Aulas magnas (publicado originalmente em 23/7/2013)
A Nouvelle Vague balançou as cadeiras dos cinemas nos anos 1950 e 1960. Eram tempos nos quais os protestos não eram organizados via facebook, os jovens liam ‘Cahiers Du Cinéma’ e tinham a figura de Jean-Paul Sartre a venerar. Há dois totens representativos desse movimento: ‘O Acossado’ e ‘Os Incompreendidos’. Rodados ambos entre 1958 e 1959 respectivamente por Jean-Luc Godard e François Truffaut, os filmes encampam ideias e motivos ferventes à época, como a rebeldia e a árdua luta contra autoritarismo. Anos atrás escrevi neste espaço sobre o primeiro. Agora teço comentários acerca do segundo. Não existem vencedores na disputa de gigantes. ‘Os Incompreendidos’ possui sua qualidade em ser inspirado nas próprias infância e pré-adolescência do diretor e como cereja do bolo tem um protagonista e tanto. Jean-Pierre Léaud vive Antoine Doinel e dizer ser magnífica a atuação é praticar lugar-comum. Recém chegado aos 15 anos, Léaud marcou tanto a geração de cinéfilos que François Truffaut o aproveitou em mais três longas e um média-metragem, ‘Antoine e Colette’ (este compôs ‘O Amor aos Vinte Anos’, fita de duas horas fracionado por cinco cineastas de cinco países).
Em ‘Os Incompreendidos’ Doinel vê diariamente o desprezo dos pais Julien (Albert Rémy) e Gilberte (Claire Maurier). Não bastasse, Petite (Guy Decomble), o professor de francês, insiste em ir ao pé do garoto lhe puxar a paciência com lições e humilhações constantes. Com estes quadros muito desfavoráveis, Doinel começa a praticar pequenos delitos. Aqui e acolá, conta com a ajuda do amigo René (Patrick Auffay), inclusive numa sequência antológica na qual a dupla rouba uma pesadíssima máquina de escrever. Dentre outras travessuras, os amigos fumam no quarto, são surpreendidos pelo pai de René, que faz vista grossa. Na medida em que se sucedem os acontecimentos, Doinel opta por morar com o parceiro. Os pais descobrem. Mandam-no ao internato. A vida acabava (ou começava?).
‘Os Incompreendidos’ foi financiado com ajuda do sogro de Truffaut e rendeu prêmios. Levou em Cannes a comenda da direção, além de ser indicado à Palma de Ouro. Na festa do Oscar de 1960 recebeu indicação de roteiro original. Crítico de cinema da ‘Cahiers Du Cinéma’ dos mais polêmicos, o diretor estreou no cinema como se olhasse no espelho de seu passado. De certa maneira, ajustou as contas com os pais e professores da tenra idade. Tornou-se filme clássico antes mesmo do fim trágico de Truffaut (ele morreu em 1984, aos 52 anos, vítima de câncer no cérebro). O legado do cineasta vai longe. Escreveu ‘Hitchcock-Truffaut’, livro-entrevista com o Mestre do Suspense, e deixou filmes de dedicação impressionante. Como avaliar a adoração de Doinel, por exemplo, por Balzac, com a cena dele acendendo uma vela e quase pondo fogo na casa ao querer venerar o escritor? Ou a provocação do professor, quando Doinel escreve (copia) o poema balzaquiano. Tem instantes cômicos, claro. Aos tantos rolos, mata um parente e é alvejado com dó do diretor da escola. Na continuação, ‘Antoine e Colette’, vemos Doinel adolescente e perdidamente apaixonado por uma moça que conhece nas salas de cinema, nos debates acalorados. A paixão também lhe traz constrangimentos, desafios e trapaças.
Enquanto os minutos se esvaem, nos sentimos como se estivéssemos diante da tal História. A película cheira Nouvelle Vague, sensação de teor semelhante ao vermos ‘O Acossado’. É bom lembrar que tanto F. Truffaut como Godard contavam menos de 30 anos quando rodaram suas obras-primas. Algo parecido com Glauber Rocha e o Cinema Novo da década de 1960. Ao filmar ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ (1964) ele estava com 25 anos. Passados uns anos, queixava-se a quem desejasse ouvi-lo que amigos cineastas, por inveja, não o perdoavam por ele ter feito ‘Deus e o Diabo...’ e ‘Terra em Transe’ antes das 30 primaveras. Na verdade, devemos à turma autênticas aulas magnas do cinema-verdade. Imediatamente no pós-realismo italiano, a sétima arte tinha as opções ótimas para seguir.