A força estranha (publicado originalmente em 12/3/2013)
A preferência por filmes cujo diretor é também o roteirista é minha. Dá-me a noção, talvez de cunho folgado e egoísta, de se sair melhor um trabalho assim, pois a mesma pessoa detém o controle da situação. Ela elaborou a história, sabe tim tim por tim tim as páginas com as falas e geralmente se tem menos atores nos sets, elenco afunilado. São os chamados diretores-autores, como Woody Allen, Charles Chaplin, Federico Fellini, Ingmar Bergman e muitos outros, para só ficar nos mestres. Com o alemão Michael Haneke ocorre isto. Dos seus 20 e tantos trabalhos – seja TV, teatro ou cinema – ele é o diretor e também quem redigiu a trama. São de M. Haneke, por exemplo, ‘A Fita Branca’ (2009) e ‘Caché’ (2005). ‘Amor’ (2012) é seu mais recente estandarte. E veja só tamanha simplicidade: apenas um cenário (apartamento), três atores centrais (Emmanuelle Riva, Jean-Louis Trintignati e Isabelle Huppert) e história tanto comum como grande, a do casal de idosos octogenários, ex-professores de música, que levavam vida normal até ela (Anne – Emmanuelle) sofrer um derrame e ficar com o lado direito do corpo paralisado. Georges (Trintignati) precisa amparar a esposa, e, assustado à primeira vista, aos poucos é obrigado a se adaptar ao ritmo novo de vida. Neste ínterim, Eva (Isabelle), a filha deles, mal tem tempo de visitá-los, e, quando o faz, é a despejar problemas conjugais, profissionais.
O longa-metragem basta por si só. Não é pra menos. ‘Amor’ esbanja até demais a experiência do quarteto envolvido. Haneke está com 70 anos. Emmanuelle, 85. Trintignati, 82. Isabelle fará 60. Desta feita, o diretor-roteirista brinca à vontade, mas brincar significa exibir na telona o trabalho de primeira. O filme tem sequências compridas, planos fechados com a câmera imóvel, e papos-cabeça de causar inspiração a Woody Allen. O casal protagonista é um show. Soou tão bem a indicação para o Oscar dela que fez-nos esquecer dele, igualmente merecedor, mas excluído. Quiçá o veterano Jean esteja melhor em relação a Emmanuelle. Sua fisionomia viva no primeiro terço dá vez a um velho de aspecto insosso e medroso, ao mesmo tempo mandão e mal educado. Enquanto isso, Emmanuelle dá o tom da realização. A fita é dela, absolutamente. A feição dura e doente, pálida, magra, demonstra a doença em estágios macabros, destruidores, maçantes. Como lidar com isto? – é a pergunta principal da moral de ‘Amor’. Há muitas alternativas. Inicialmente, Georges é paciente. Porém, na medida em que a cura impõe a poeira na estrada, o marido não sabe o que fazer com a esposa. Esta o fez de pés juntos jurar não pô-la em hospitais, para esperar a morte entre as paredes desconhecidas. E agora? A solução seria inescapável ou angustiante? Aguardar o sofrimento ao lado, ir com ela é de fato o ideal?
‘Amor’ nos inflige diversos dilemas, dúvidas, questionamentos. Qual é o limite do verdadeiro amor? Estamos preparados a lidar com o definhamento de quem amamos, passamos décadas juntos? Temos de ser habilidosos ao extremo para satisfazer nossos (as) companheiros (as)? À parte destas e de outras perguntas, destaca-se a produção e direção de arte de ‘Amor’. Com história complicada de se digerir, traz-nos sentimentos atrozes, simultaneamente acarinhados. Imediatamente ao fim da fita ficamos com a vontade de abraçar e beijar nossos entes queridos, demonstrar todo o nosso afago por eles. Michael Haneke doma bem 100% deste drama altamente desconcertante. Quando se divulgou a lista dos indicados ao Oscar, coroei a Academia por ter se lembrado de ‘Amor’ em cinco categorias. E depois retirei o presente quando o longa ganhou somente o troféu de filme estrangeiro (Áustria). São necessários infinitos aplausos a Haneke, Emmanuelle Riva, Jean-Louis Trintignati e Isabelle Hupert.