Brindes e cerejas (publicado originalmente em 22/1/2013)
Como de costume, logo na primeira cena de ‘Django Livre’, em cartaz há três dias, sabemos se tratar do novo trabalho de Quentin Tarantino. Ou seria uma velha produção toda repaginada, com os rescaldos de rolos de filmes anteriores? A ver. Temos a certeza de que King Schultz aprontará contra o pobre mercador de escravos naquele ‘qualquer lugar do sul’ de 1860. E o diretor não espanta o seu público fiel. O personagem de Christoph Waltz destroça todos em volta, menos Django (Jamie Foxx), o seu procurado. Schultz é caçador de recompensas (‘dentista só fui por cinco anos, até descobrir esta mina de ouro’) e busca ‘vivos ou mortos’ três irmãos, os Brittle. Deste encontro forçado entre Django e o ex-dentista nasce uma parceria além-moral, pois o ex-escravo também se adere às gratificações. A dupla combina porcentagens, Django aprende a atirar e papo vai, papo vem, e o recém-liberto revela que Broomhilda (Kerry Washington), sua esposa, está presa. Sim, Broomhilda é negra, foi criada por alemães e fala a língua, aliás, a mesma natal de Schultz (enfim, situações que convém a um roteiro). A história perambula até acharem a bilíngue em Candyland, fazenda onde Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), o rico herdeiro de terras e escravos, promove lutas até a morte entre os seus prisioneiros.
‘Django Livre’ é Tarantino até o último segundo de suas 2h45min de duração. O cineasta tem a noção de espalhar ao longo da fita algumas farpas que o público tem de digerir. Há tempo para isto. A primeira metade mostra os feitos da dupla de caçadores. A segunda parte é o duelo entre Calvin e Schultz, permeando desconfianças em torno de Django e Broomhilda. Esquecemo-nos da real função do filme– parodiar os faroestes espaguetes dos anos 1960– e nos debruçamos na diversão na acepção da palavra. Queremos ver tiros, explosões, sangue jorrando. Afinal, é Tarantino. E ele nos dá todos os presentes, mas como brindes... As cerejas do bolo no caso são as atuações, igualmente à sua película anterior, ‘Bastardos Inglórios’ (2009). Waltz, destaque no longa sobre o nazismo, detém o seu relevo na produção do ano passado. Ele e o diretor se acertam na telona. Não à toa, o ator foi indicado como coadjuvante na festa do Oscar, dia 24 de fevereiro (levou a estatueta em 2009). É fazer o simples, e o script contribui. Diálogos ácidos e irônicos são a base de Quentin Tarantino. Nas bocas de caricatos personagens como Django, Schultz e Calvin soam como bala na agulha. Tensão e riso caminham de mãos dadas. O realizador usa sentimentos como quebra-galhos. É isto que torna a trama sensacional.
Quem surpreende sem causar surpresa é Samuel L. Jackson. Na pele de Stephen, escravo que debanda ao lado antiabolicionista, maltratando pessoas negras como ele, defendendo chefes brancos sinhozinhos. O caso de Jackson é exemplar no que se refere a grandes atores em parceria com bons diretores. Ele costuma fazer de três a quatro filmes por ano e a maioria realizações decadentes. Mas a bordo do carrossel Tarantino isto não ocorre. Aliás, Jackson merecia estar nos cinco finalistas como melhor coadjuvante no Oscar. Poderia ocupar o lugar de Alan Arkin, de ‘Argo’ (2012), que está bem, porém não tanto como Jackson. De DiCaprio, ele não figurar nos concorrentes é plausível. Os outros possuem gabarito a tal e, ainda assim, não há como derrotar Daniel Day Lewis. Em ‘Lincoln’ (2012), o protagonista de ‘Meu Pé Esquerdo’ (89) é insuperável. Ademais, de volta a ‘Django Livre’, é muito comovente apreciar Q. Tarantino nas entranhas. Brinca de fazer cinema, e no bom sentido. O próprio se atreve a fazer uma ponta como pistoleiro veloz do velho oeste. Discordo do crítico André Barcinski quando ele escreve que o roteiro parece redigido por um aprendiz de Tarantino. As falas são, sim, um Tarantino menos afoito, mais abusado, achincalhado. Talvez o jornalista levou ‘Django Livre’ a sério.