A face do horror (publicado originalmente em 4/12/2012)
O movimento do expressionismo alemão é o tema da coluna de hoje. ‘O Gabinete do Doutor Caligari’ (1919), um dos expoentes do estilo, ao lado de ‘Nosferatu’ (1922) é o filme a ser comentado. As características do tipo germânico de se fazer cinema há quase um século giravam em torno de tipo específico de tudo. Os cenários geralmente eram entortados, curvados, às vezes até pontiagudos. Nas maquiagens, rostos pálidos davam a impressão de que os atores eram zumbis em ação. Pele branca, olhos com sombras e lábios negros eram os tons. Os lugares eram desenhados com estampas fortes e firmes, para soar veracidade e seriedade do mundo sem graça que ia mal. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) contaminou, à nossa alegria, o expressionismo alemão e rendeu obras de arte como é ‘O Gabinete...’. Dirigido por Robert Wiene, ícone da época, a história mostra um cientista louco (doutor Caligari –ator Werner Krauss) recém-chegado a uma vila. Ele deseja fazer parte da feira que ocorrerá por ali e inscreve-se para exibir às pessoas Cesare (Conrad Veidt, o protagonista do também clássico ‘O Homem que Ri’, de 1928), seu paciente. Ele dorme num sono profundo há 23 anos e acorda ao bel prazer do amo, que o incita a rebater as questões do público acertando o passado, prevendo o futuro.
Por meio da hipnose, Caligari manda Cesare cometer assassinatos no vilarejo, para o espanto dos parcos habitantes. Francis (Friedrich Feher) e Alan (H. Henrich), dois amigos, assistem ao show do doutor pirado e desconfiam da misancene. Após o sonâmbulo matar Alan e sequestrar Jane (Lil Dagover), namorada deste, a polícia e alguns moradores perseguem Cesare para fazer justiça com as próprias mãos. Enquanto isso, Francis, arrasado pela morte do parceiro, investiga os malfeitos do dr. Caligari. E é o momento, então, de o roteiro de Carl Mayer e Hans Janowitz guinar. Na verdade, tudo não passa de delírios de Francis, um interno do hospício. Ele pensa que o diretor de lá é o tal Caligari e devaneia prum outro demente contando-lhe toda a aventura. Wiene, Mayer e Janowitz conseguem arrebatar o espectador ao fazê-lo crer a princípio em uma verdade, para depois descortinar a verdade verdadeira. A montagem da fita é esplêndida, com as passagens elaboradas por zoom in e zoom out, e até mesmo os intertítulos das conversas são trabalhados nos modelos vergados, que citei nas linhas anteriores. Nota-se as portas dos lugares completamente distorcidas (do exemplo que se for largada, ela se fechará pela gravidade). Outra beleza é a fotografia de Willy Hameister. Sombria e tenebrosa.
Impressiona-me sobremaneira o teor psicológico. Lembrou-me o recente ‘A Ilha do Medo’, de Martin Scorsese (2010) e, pela cenografia, o atrevido ‘Dogville’ (2003), de Lars Von Trier. As feições dos personagens são o chamariz, principalmente a de Cesare. Veidt consegue imprimir ao doente as angústias de um ser acabado. Na sequência na qual apaixona-se por Jane, o ator nos passa a ideia de que ela é de fato a única coisa importante no ambiente, querendo se ver livre de todo o resto. Krauss talvez tenha realizado o seu melhor trabalho em mais de 130 filmes rodados. Aos 35 anos, aparentou n’ ‘O Gabinete...’ uns 70 e fez-nos acreditar na sua loucura. O rosto perverso e traiçoeiro é assustador e maligno. Mas os olhos de Veidt são atemorizantes, e especialmente na primeira aparição de Cesare.
Percebem-se ainda as vestes esbranquiçadas da mocinha. Jane, e volto à cena onde Cesare se enamora dela, tem um contraste impactante com o raptor, este de preto. E assim é o expressionismo alemão. As faces do horror estampadas nos detalhes. Não existem sorrisos, apenas queixas e sustos.