Mascarado, com ‘M’ maiúsculo (publicado originalmente em 27/11/2012)
O Brasil é um país de vilões fabricados por motivos distintos. Barbosa é, por exemplo. Goleiro da Copa de 1950, pagou pena além da máxima de 30 anos, como o próprio costumava afirmar. Se ele falhou ou não na final, não interessa. Pegaram-no a Cristo e o ex-guarda-redes morreu desgostoso de tudo, inclusive da vida. Há outros, como Wilson Simonal de Castro (1938-2000). Talvez mais do que o futebolista. Cantor, negro, soberbo e prepotente, pois lhe fizeram assim. Invejado e pisoteado pela crítica, duma vanguarda desproporcional, ‘Simona’, como ele mesmo se apelidou, amealhou carrões (três Mercedes), mulheres e encrencas. Para tentar desvendar os mistérios e retirar a mancha de ter sido alcaguete da ditadura militar brasileira (1964-85), os diretores e roteiristas Calvito Leal, Cláudio Manoel, Micael Langer montaram o documentário ‘Simonal: Ninguém Sabe o Duro que Dei’ (2009).
A primeira metade exibe feitios de Simonal nos palcos. A liderança da plateia é uma amostra de capacidade performática. ‘As pessoas gargarejavam antes de ir aos shows’, lembra Chico Anysio. O humorista (1931-2012), aliás, é presença quase fixa no longa. O mote da obra é sua segunda metade: achar o contador que, supostamente, roubou o cantor e, a partir deste fato, destrambelhou Simonal num rumo sem volta ao ostracismo. Raphael Vivianni, o contador, foi agredido por homens ligados ao artista por conta da ‘fraude’ e, como se viviam os anos de chumbo do militarismo (1970, 1971), ‘O Pasquim’, jornal de oposição ao regime vigente, associou o intérprete de ‘Meu Limão, Meu Limoeiro’ à repressão. E não demorou a cantores e atores aderirem ao movimento anti-Simonal. Ele tornou-se exilado do Brasil, mas vivendo nele. ‘Ele dizia que não existia’, recorda Sandra Cerqueira, ex-esposa.
De 1974 a 1992 não se ouvia falar no nome de Simonal em terras verde-amarelas. Deprimido, carente e totalmente desprezado pela mídia, virou alcoólatra. ‘Vinícius de Moraes e Tom Jobim não bebiam água só. E porque somente o Simonal era alcoólatra?’, comentou Sandra. Os champignons e o bordão ‘Alegria, alegria’ se retiraram para dar vez a um Simonal revoltado e incisivo. A fita mostra programas nos quais o cantor foi nas décadas de 1980 e 90 se defender. Levava documentos, porém o estrago já estava consumado. Doente, morreu aos 62 anos. ‘Tenho a certeza de que quando viram o sofrimento dele, todos imediatamente se arrependeram’, arrisca Boni, ex-chefão da Globo. Por sinal, a emissora baniu Simonal de suas atrações na hora em que as denúncias pipocaram. Vivianni presta tocante depoimento também. ‘Ele não teve pena quando me bateram. Então, eu não tive dele depois.’
‘Simonal: Ninguém Sabe o Duro que Dei’ não se restringe apenas à tristeza. Histórias alegres e cômicas, como a de quando e por qual motivo Simonal começou a usar a faixa nos cabelos, estão lá.
O grande legado deixado pela película, todavia, são os testemunhos dos amigos. Manoel, Leal e Langer conseguiram trazer na tela a comoção provocada pelo cantor. Há momentos históricos. Um dueto com a cantora Sarah Vaughan (1924-1990) é impactante. Noutra, durante uma entrevista, um repórter pergunta a Simonal: ‘Você não tem medo de ficar estigmatizado como um cara mascarado?’ Eis a resposta, na lata: ‘Mas eu sou mascarado.’ Diria além: é mascarado com ‘m’ maiúsculo. Simonal era atrevido e o documentário tem este igual nível. O documentário registra para todos, fãs atuais ou aqueles futuros, a música travessa do cantor, como se quisesse retirá-lo do purgatório extremo para o céu dos ídolos eternos. Sem dúvida, ‘Simona’ merece a cadeira honrosa no cenário musical brasileiro.