O jovem velho (publicado originalmente em 13/11/2012)

Se a palavra era ousadia, Glauber Rocha dizia ‘presente’. Foi desta forma contestadora e bem arrojada toda a estrada esburacada do cineasta de Vitória da Conquista. Ao rodar o curta-metragem ‘Maranhão 66’, o diretor tinha feito dois filmes–‘Barravento’, quatro anos antes, e ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ (1963), além de mais três curtas: ‘Pátio’, marcado por ser o de estreia, ‘A Cruz na Praça’ (ambos de 1959) e ‘Amazonas, Amazonas’ (1965). Engajado política e culturalmente desde sua tenra idade, Glauber se empolgou com a vitória da promessa José Sarney ao governo maranhense. E então uma mão lavou a outra, pois o pedido para a feitura do documentário partiu do político, então eleito em 1965 pela coligação UDN (União Democrática Nacional) / Arena (Aliança Renovadora Nacional).

‘Maranhão 66’ baseia-se no discurso da posse de Sarney, então com 35 anos. Exibido como a reportagem cinematográfica de Glauber e Fernando Duarte, teve produção de Luiz Carlos Barreto. As primeiras imagens mostram o futuro presidente do Brasil ainda com os cabelos negros, praticamente é levado pelos braços da população. As ruas, simples, estão entupidas de gente nas janelas, enquanto acotovelam-se com seus guarda-chuvas em busca de melhor lugar para ver o moço. A banda militar toca esfuziante. As pessoas o olham com fervor, em busca dum santo que aliviasse a situação deixada por Newton de Barros Belo. Então, na praça, ladeado de eleitores e aos gritos de ‘Sarney!, Sarney!’, o recém-empossado começa a homilia o qual é a base-mor do trabalho de Glauber em ‘Maranhão 66’.

A boa sacada do diretor de ‘Idade da Terra’ (1980) estava na sua edição. Durante a preleção, as palavras de Sarney são cobertas por imagens tétricas do Estado que lideraria. Funcionou assim: o governador fala de saúde, Glauber imediatamente inseria os precários atendimentos dos hospitais, a pobreza absoluta de equipamentos, sujeira e desleixo. Sarney aborda a eleição e agradece a todos que votaram nele, e o cineasta morto em 1981 estampa na tela as casas paupérrimas, de pau-a-pique, e os moradores de meia água penando para viver de maneira digna pelo menos. E o curta segue esquema durante seus quase 11 minutos. O vigor destemido de Glauber se sobrepôs aos juramentos de quem solicitou a filmagem. O cineasta destrinchou as promessas de J. Sarney nas frases puídas do político.

‘Maranhão 66’ serviu de base para o baiano rodar ‘Terra em Transe’ um ano depois. Isto pode ser notado, pois dois takes do documentário compõem longa-metragem de cunho indubitavelmente político. Aliás, Eduardo Escorel, o responsável pelo som do curta, leu pela primeira vez o roteiro de ‘Terra em Transe’ durante a montagem de ‘Maranhão 66’. A informação é do site Tempo Glauber. E é o próprio Glauber quem relata: ‘Foi uma experiência muito útil [o curta] para Terra em Transe, pois participei das etapas de uma campanha eleitoral.’ (retirado do jornal ‘O Estado de Minas’, de maio de 1980). Mas será que Glauber enxergou em José Sarney a inspiração para Porfírio Diaz (personagem que representa os tecnocratas anticomunistas, interpretado por Paulo Autran) da película de 1967?

Outra pergunta pertinente é: Maranhão é Eldorado (é onde as falcatruas de ‘Terra em Transe’ ocorrem)? Estas questões fazem parte do imaginário glauberiano, onde política, sociedade, cultura e mundo em geral se confundem como reflexos de espelhos dispostos frente a frente. As denúncias de ‘Maranhão 66’ são chocantes para o Brasil de 1966, não ao atual. E é incrível saber que a família de J. Sarney ‘dominou’ os governos até cinco anos atrás, e o Estado caminhou muito lentamente nas cinco décadas. Maranhão, como Alagoas, Piauí, Sergipe e tantos outros da parte de cima do país, soariam a Glauber um ruído estridente. Certamente, o Brasil seria um tico diferente se o cineasta estivesse vivo.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 13/11/2012
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