Sorriso e lágrima (publicado originalmente em 23/10/2012)
Semanas atrás comentei aqui sobre a coleção formidável que o jornal Folha de São Paulo dos filmes de Charles Chaplin. Um deles até hoje não havia comentado neste espaço é ‘O Garoto’ (1921), e este é considerado o primeiro longa-metragem do cineasta inglês, mesmo com os médios 50 minutos de duração. Na verdade, a edição primeira tinha 18 minutos a mais, cortados por Chaplin na reedição de 1970 por crer que eram sentimentais e dispensáveis. A maioria que gosta da sétima arte conhece a história deste filme. A mãe (Edna Purviance) não tem como cuidar do filho e o abandona dentro de um carro. Este é furtado por ladrões. Quando os bandidos percebem a criança no veículo, deixam-na numa calçada. Então chega o vagabundo (Carlitos – Chaplin) e acha o petiz ali. Sabe que ele significa encrenca e tenta se livrar. Mas a polícia, sempre a polícia (é incrível como C. Chaplin usa os policiais como símbolo do medo em suas fitas) o persegue e o sujeito de bigodinho esquisito e calças largas é, de certa maneira, obrigado a criar o rebento. Quando o menino cresce (Jackie Coogan), aos 5 anos, é treinado para fazer as vigarices profissionais com o pai adotivo, como, por exemplo, quebrar janelas das casas para depois Carlitos surgir, ‘inocente’, com um vidro novinho pronto pra vender aos donos.
Apresentado nas telonas com o subtítulo ‘Um filme com um sorriso... e talvez uma lágrima’, ‘O Garoto’ estreou nos EUA em fevereiro de 1921 com uma baita expectativa do público. E os motivos não eram difíceis de serem decifrados: Charles Chaplin fazia muito sucesso nos ecrãs com os curtas-metragens nos anos 1910 e os espectadores já ansiavam por algo a mais do cineasta. A história triste e com parcos instantes cômicos contagiou a plateia, embevecida e comovida que estava por Coogan. O ‘achado’ de Chaplin era a criança. Sobretudo a cena onde os assistentes sociais a tiram de Carlitos. O choro copioso do menino não passa incólume nem sequer pelo mais asqueroso ser humano. E nos bastidores, instantes antes de gravar a sequência, Coogan não derramava uma lágrima sequer. Foi o seu pai quem o ‘convenceu’ a chorar, ameaçando-o de que o levariam de fato a um orfanato. Berreiro aberto, câmeras postas e o cinema ganhava um dos momentos mais inesquecíveis de sua história. E a isto se junta o rosto penoso do vagabundo, os olhos tenros quiçá mais entristecidos do que o próprio garoto. Aliás, Chaplin descobriu Coogan quando este atuava num número musical ao lado de seu pai.
O filme em si, como quaisquer outras realizações de Chaplin, é produção estupenda. Gênio da raça incólume e sem defeitos em frente às câmeras, o ator-diretor enfrentava um brutal revés na sua vida na época das filmagens de ‘O Garoto’. Norman, seu filho com a atriz Mildred Harris, nascera a 7 de julho de 1919, mas morreu somente três dias depois, para amargor dos pais. Dizia-se na época de ‘O Garoto’ que o cineasta depositou toda a sua parte paternal em Coogan, pois o sentia como se fosse aquele seu filho perdido, e daí as cenas tão impactantes e emocionantes (Chaplin só teria outro filho em 1925, Chaplin Jr, morto em 1968, poucos dias antes de completar 43 anos). O sofrimento do casal Chaplin-Harris foi tanto que não suportaram mais viver juntos e se separaram em 1920. Mas não se pode dizer que tudo foi em vão: ‘O Garoto’ evidencia emoção como nunca antes no cinema. Um bom exemplo é a sequência na qual o vagabundo sonha com anjos a sua volta após ter perdido o seu filho adotivo. Aquilo possui a carga de dramaticidade fora do comum. Kevin Brownlow, crítico de cinema, relata: ‘Apresentei Chaplin à minha filha com O Garoto. Na cena em que levam Coogan embora, ela caiu no choro. Perguntei-a: não gostou as partes engraçadas? Ela me disse: que partes engraçadas?’.