A grande festa (publicado originalmente em 8/10/2012)
A sala de estar é rudimentar – dois sofás, o bar vulgar no canto, a mesa de sinuca no fundo e as escadas na parte antípoda. Não se sabe se ali há televisão (e se houver, está bem acanhada). Duas portas organizam o ambiente. Nesta paisagem, e apenas nela, Ugo Giorgetti rodou ‘Festa’ (1989), até agora – admito a falha – o único trabalho que vi dele. Tenho a certeza de que é uma de suas melhores realizações (entre filmou oito longas). Uma história ideal, muito cômica e com certo valor destemido.
Nenhum personagem tem nome. Sabemos do jogador de sinuca (Adriano Stuart), o ‘velho’, o seu assistente (Antônio Abujamra), o cerimonialista (Otávio Augusto), o gaiteiro (Jorge Mautner) e a estrela de TV (Ney Latorraca). O enredo é fácil: o jogador, o ajudante e o tocador de gaita estão numa festa. Aguardam serem chamados a se apresentarem. O anfitrião, um senador, e todos os convidados, estão no piso superior e lá ficam a história toda. ‘Não subam de jeito nenhum!’, adverte o responsável pelo cerimonial ao trio de artistas. A dupla do bilhar é viciada em aplicar nos outros pequenos golpes com as suas apostas para ver quem é melhor na modalidade dos tacos. Arrancam uns trocados aqui e acolá e tem a chance, no evento do senador, de ganhar mais algum para passar o dia seguinte na paz.
O ponto-chave de ‘Festa’ é, claro, o roteiro. Os diálogos sugerem pouco ou nenhum trabalho por parte de Giorgetti. Engana-se quem supõe isto. Escrevo sempre aqui: moldar o simples é tarefa a raros. Na fita, nos deliciamos com a rabugice e as reclamações do personagem de Abujamra, o mau humor e ironia do de Stuart e a ingenuidade e perseverança do de Mautner (o gaiteiro só participava, pois o senador o havia visto num programa do Silvio Santos). Iara Jamra é a doméstica da casa e é fã de qualquer um da TV. Quando o astro convidado surge para fazer um discurso inflamado, se derrete toda, para desgosto da dupla de trambiqueiros, que tentava boliná-la sem nenhum cheiro de timidez.
Enquanto esperam ser chamados, papeiam. Giorgetti dá show. Transmite ao público toda sua manipulação dos atores e nós achamos graça, principalmente da encenação de Abujamra (debutava no posto de ator, aos 56 anos – logo depois faria o sucesso Ravengar da novela ‘Que Rei Sou Eu?’).
É bom lembrar que entre o fim da década de 1980 e o início da seguinte o cinema brasileiro sofria uma das piores fases no setor ‘qualidade’. A Embrafilme estava prestes a ser fechada, o Brasil somente tinha ‘Os Trapalhões’ e Xuxa no cinema e a geração da época simplesmente ruiu para, como a Fênix, renascer em 1995 com Carla Camuratti e sua ‘Carlota Joaquina’. Mesmo nesta toada, ‘Festa’ contaminou o espectador. Rendeu a Giorgetti prêmios relevantes como o Festival de Gramado (filme, ator a Stuart e Abujamra, roteiro, figurino, edição de som) e a APCA– Associação Paulista de Críticos de Arte (filme e ator a Stuart) e tornou Antônio Abujamra um ser performático à frente das câmeras.
O filme conta com participações da lenda José Lewgoy (o bêbado), Patrícia Pillar (convidada da festa), Marcelo Mansfield (garçom; hoje parceiro de Danilo Gentilli no programa ‘Agora é Tarde’).
‘Festa’ faz tênue análise da sociedade brasileira. Estão na obra o famoso ‘jeitinho’, a adoração por celebridades, a malícia do engana-trouxa e a empáfia dos superiores. A divisão entre o andar de cima e o de baixo denota a separação de classes, tal como em ‘Assassinato em Gosford Park’ (2001). Aliás, o filme de Robert Altman soa como ter bebido do brasileiro. Claro, ilusões à parte, em tudo se assemelham. Porém, ‘Festa’ tem Abujamra e o humor um tanto mais tupiniquim, atrevido, colorido.