Sentidos (publicado originalmente em 2/10/2012)
Poesia também se escreve para cinema. ‘Intocáveis’, filme francês, é a prova de que, como eu costumo afirmar, existe vida fora dos efeitos especiais. Em cartaz no Cinemark de São José, o longa é sucesso no Brasil e está na quinta posição entre os bilhetes mais vendidos: arrecadou, segundo o site Filme B, R$ 1,2 milhão em cerca de 500 mil ingressos. As pessoas, creio, correm na propaganda boca a boca da história da amizade do empresário multimilionário tetraplégico Phillipe (François Cluzet) e do pobre morador do gueto e desempregado Driss (Omar Sy). O comercial está sendo bem feito, não?
Com o roteiro e a direção redigido a quatro mãos –Olivier Nakache e Eric Toledano – trata de amizade, confiança, sinceridade, honestidade, cumplicidade, companheirismo e egoísmo. Sim, todos estes sentimentos estão expostos para nós apreciarmos e, se desejarmos, retribuirmos aos amigos e a qualquer pessoa. Phillipe conhece Driss na entrevista de emprego para ser o seu assistente. O negrão alto, olhos e boca grandes, não possui intimidade alguma em cuidar de deficientes. Até outro dia era expulso de casa pela mãe por vagabundagem. Num piscar d’olhos foi morar na mansão, com quarto com banheira, cercado de empregados que se tornariam seus parceiros e paqueras, como Magalie, a ruiva quente (Audrey Fleurot). O milionário se afeiçoa a Driss, pois este não o trata como doente. É o contrário: Driss comete gafes absurdas (exemplo: estende a mão com o telefone para Phillipe pegar, e ele, Phillipe, não movimenta o corpo do pescoço a baixo), mas faz renascer a vida no aristocrata. As cenas são engraçadas e é nisto que reside a esperteza e o pulo do gato de O. Nakache e E. Toledano.
A dupla de cineastas dá ao espectador o direito de julgar: temos de ter compaixão ou sermos ‘normais’ com o paralítico? Numa cena, Phillipe diz: ‘Gostei dele porque ele não sente pena de mim, e estou farto de pessoas em minha volta com pena de mim.’ Na verdade, o buraco está mais embaixo.
Está claro a dependência de Phillipe para com Driss. Todavia, o oposto igualmente ocorre. A amizade faz bem a Driss. Ele se distancia dos problemas, do gueto, de seu lar problemático. Faz tudo para não se afastar do empresário que lhe dá oportunidade de se tornar gente, cidadão com a mesma importância dos ricos, de todos. Driss sem Phillipe fica manco, deficiente do cotidiano, das alegrias.
‘Intocáveis’ foi o filme que a França indicou este ano para tentar ser finalista da categoria de melhor trabalho em língua estrangeira no Oscar 2013. Lembre-se que o Brasil inscreveu o fenômeno ‘O Palhaço’ (2012). Não conheço os demais escolhidos, mas ambos merecem ser apontados nos votos da Academia dos EUA. Pode-se traçar um paralelo, aliás, entre as duas obras. Têm sensibilidade em lidar com a dificuldade alheia. Enquanto Phillipe procura facilidades nos movimentos mais simples da vida, com Driss realizando isto a ele, sendo o motor, a fita brasileira, do mesmo modo, vê os dois personagens principais, de Selton Mello e Paulo José (Benjamin e Valdemar, respectivamente), como acoplados um ao outro, neste caso pai e filho. Benjamin tem dúvidas se deseja seguir a profissão do pai, a de palhaço, e Valdemar, se não tiver o filho ao lado, abandona o ofício de tirar o riso da plateia.
Em ‘Intocáveis’ François e Omar dão show diante das câmeras, em particular o primeiro. Às vezes ele me fez lembrar Dustin Hoffman, com o sorriso sacana, maroto. Noutras, trouxe em minha memória Robert DeNiro, principalmente na atuação segura. Sobre Omar, haja carisma nas telas para segurar tanta qualidade. De fato, necessita-se de muito mais do que somente efeitos visuais a fazer a película perfeita. Há de ter sentidos, no mais amplo sentido. Neste ponto, o filme francês é intocável.