Ficção vs Realidade: A Rosa Púrpura do Cairo

“E a coisa mais certa de todas as coisas

Não vale um caminho sob o sol”

(Caetano Veloso – Força Estranha)

Imagine-se aprisionado numa vida deplorável, com uma pessoa que não faz nada além de lhe explorar até os limites em prol de seus desejos pequenos e egoístas e sem possibilidade de seguir adiante, de modificar o estado. É nesta situação que se encontra Cecília (genialmente interpretada por Mia Farrow), protagonista de A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen, 1985) abusada por seu marido que passa o dia jogando e bebendo e com outras mulheres, enquando ela trabalha para manter a casa – tendo como cenário de fundo tempos de depressão econômica.

É nesta atmosfera dolorosa, já tão própria do ser humano, que Cecília se mostra apaixonada por filmes, indo inúmeras vezes ao cinema e sabendo de tudo o que acontece nos filmes e na vida dos atores. O mundo ficcional que ela encontra no cinema acaba se tornando um ponto de partida para fugir de sua realidade degradante, transtornada por um marido ausente e por uma vida banal.

Neste cenário onde o desenvolvimento tecnológico tem influenciado cada vez mais a substituição da realidade pelo ficcional ou ainda a hibridização desses dois domínios (real vs irreal), estes processos culminam na ficcionalização/desrealização do mundo quando Tom Baxter (interpretado por Jeff Daniels) atravessa sua dimensão irreal (filme) para a dimensão real, motivado por sua paixão por Cecília. Ao longo do filme, Cecília se vê confrontrada com as escolhas entre o real e o irreal, onde é forçada a tomar uma decisão – no caso, pela realidade, que termina num final melancólico.

Diante todo esse enredo, fiquei surpreso (e decepcionado) ao encontrar várias críticas e resenhas comentando exclusivamente o papel da metalínguagem e/ou sobre o poder do cinema na felicidade das pessoas. Pareceu-me incomum que ninguém tenha suscitado uma discussão bem mais interessante, a meu ver, erigida nessa batalha apocalíptica que estamos vivendo: realidade vs ficção. Onde surgem casos, esporadicamente, de pessoas que morreram de fome por não conseguiram se desgrudar do mundo ficcional; onde a vida social/natural é relegada ao segundo plano para dar prioridade ao virtual – que, convenhamos, não passam de uma cópia infiel; onde o primeiro-ministro de uma grande nação comenta publicamente que o problema de novos empregos é não sobrar tempo para ler quadrinhos.

A irrealidade pode suprir de maneira quase total as necessidades individuais e fornecer possibilidades de evasão e de sentidos e possibilidades, como pode ser visto quando Cecília abandona o cinema com Tom, recém-saído das telas, e vivem uma paixão pelas ruas da cidade. Essa mesma vantagem do ficcional pode ser vista noutras obras, como, por exemplo, Jogador nº1 (escrito por Ernest Cline); ou mesmo em referência a quase todos de minha geração, Harry Potter e a Pedra Filosofal (J. K. Rownling), naquele inesperado encontro de Harry com o Espelho de Ojesed.

Depois de toda a confusão da fuga do personagem, quando os outros ficam confusos e perdidos em suas ações dentro do filme, que a imprensa se dá conta do acontecimento e começa a cercar o lugar. Nas diversas discussões, quando um dos outros personagens alega querer sair das telas também, é que se ouve uma das melhores (se não a melhor) fala do filme:

“The real ones want their lives fictional,

and fictional ones want their lives real.”

É perceptível a decepção de Cecília ao se deparar com detalhes de sua ficção que veio em fuga à realidade, tal qual seus conceitos pequenos sobre discussões filosóficas ou seu senso completamente impraticável e inadequado ao mundo que os cerca. Torna-se óbvio que a ficção não pode assumir o lugar de algumas das características próprias do indíviduo e emergentes do sistema que juntos formamos, como o ato de pensar e nossas relações que formam o todo. É isso que a personagem percebe, abrindo mão de seu personagem fictício por um personagem real que lhe promete uma mudança inesperada em sua vida, à qual ela se joga inteiramente. Mas, deixada de lado por este último, a personagem parece voltar ao comportamento psicótico de antes, entregando-se novamente à sétima arte, abalada por ter sido enganada.

Ao contrário das resenhas que li sobre o assunto, a cena final não demonstra a esperança da personagem ao ver mais um filme e visualizar possibilidades futuras. É interessante ver que ela apenas volta ao comportamento de aceitação da realidade e fuga completa da realidade à ficção. Percebe-se que Cecília foi completamente feliz apenas nas relações com o mundo real, representado pelo ator hollywoodiano que vem para resolver a situação do personagem fictício fugitivo, pois este entende as necessidades práticas do mundo e ainda assim lhe permite a perspectiva de um futuro melhor: ao mesmo tempo se conformando com a realidade, mas disposto a modificá-la em prol de sua melhoria. O que demonstra a cena final é o retorno ao seu comportamento de negação da realidade para viver na ilusão, onde já não era feliz antes – senão jamais teria se entregado a outros caminhos, possibilidades.

Não obstante, certamente não sou contrário às fugas da realidade. Pessoalmente, acredito que um equilíbrio seja necessário, onde não siga nem o extremo de submissão completa nem de negação absoluta.

“Não faz bem viver sonhando

E se esquecer de viver,

lembre-se.”

(Harry Potter e a Pedra Filosofal – J. K. Rowling)