Os Teixeira (publicado originalmente em 4/9/2012)

Documentários rodados com cuidados de cena, onde personagens depoentes estão todos com maquiagem, luz acertada, engomados e preparados com dias de antecedência, me agradam também, mas os meus preferidos são aqueles nos quais o diretor mostra a cara à tapa, se indispõe com pessoas e enfrenta maus humores. Eduardo Coutinho lidou muito mais do que tudo isto em ‘Cabra Marcado para Morrer’ (1985), um projeto grandioso, tanto de trabalho como de tempo de produção. Ele teve a ideia em 1962, começaria a filmar em 1964 quando forças maiores o impediram, decidiu reiniciar os certames em 1981, seguiu um pouco ainda no ano seguinte e só lançou o longa finalmente em 1985.

A história parece difícil de entender, mas não é... Em 1962 o cineasta, então com 29 anos, era somente um aspirante do CPC (Centro Popular de Cultura) da Une (União Nacional dos Estudantes) em Alagoas, para onde foi mandado registrar com a câmera o novo campo de petróleo da Petrobrás. Em abril do mesmo ano, o grupo foi a Pernambuco e à Paraíba. Ali se deparou com a história de João Pedro Teixeira, fundador e o líder da Liga Camponesa de Sapé. O sujeito havia sido assassinado por latifundiários. Resumindo: o golpe de 1964 impediu Coutinho de rodar a história por trás do crime e 17 anos mais tarde recomeçou, praticamente do zero, a procurar os personagens do sertão brasileiro.

No centro do tufão está Elizabeth Teixeira, a viúva (tinha 37 anos quando o marido morreu, com 44 – estavam juntos há duas décadas e tiveram 11 filhos). Mulher ‘macho’ no bom sentido. Teve de fugir da Paraíba para também não tombar e nestes preâmbulos seus rebentos foram se perdendo mundo afora. A missão de Coutinho era uma só: juntar os cacos da tragédia de João Pedro e, assim, conseguir fazer com que Elizabeth soubesse pelo menos dos paradeiros dos filhos. Neste instante, o cineasta tornou-se quase um juiz de paz disfarçado de jornalista. Quando retomou os trâmites em 81, Coutinho já era famoso por seus feitos no Globo Repórter e desejava vingar a família Teixeira pondo nas telonas o drama deles. Conseguiu. ‘Cabra Marcado para Morrer’ sobreviveu ao tempo. Revi-o por estes dias e notei toda a sua atualidade, combinada com a singeleza e crueza das imagens registradas.

Coutinho quer saber o que aconteceu no intervalo de 17 anos e pergunta de tudo às pessoas. De questões simples surgem respostas incisivas. Atores de outrora se recusam a falar inicialmente, e um exemplo é João Mariano, ‘intérprete’ de João Pedro em 1964. Uma das filhas de Elizabeth chora ao ver as fotos da mãe, então jovem, e diz se lembrar das filmagens. Outro estuda medicina em Cuba e já possui sotaque espanhol. O mais velho vive com a mãe e, revoltado, diz que governos não servem aos pobres. Elizabeth, carcomida pelos anos (parece ter uns 80, tinha na realidade 56 em 1981), quer espanar o passado de vez. ‘João sabia que morreria’, conta. De aluna primária passou a professora de português e matemática das crianças de Rio Grande do Norte, para onde ‘se exilou’ e ‘mudou’ o seu nome para Marta. Resgatar a identidade é outro papel importante de ‘Cabra Marcado para Morrer’.

O diretor não se preocupa em enfeitar seu trabalho. Mostra as situações de modo cru, quando entra nos lugares, perguntando ao câmera se a luz está boa, conversando com transeuntes etc. Bate à porta dos entrevistados. Deu ao Brasil um pouco da realeza, como diria o escritor Machado de Assis.

Ano passado, em outubro, Elizabeth (aos 86 anos) e Coutinho (78) se reencontraram depois de 29 anos, num festival de cinema. Ela tem hoje 87 e persiste em sua firmeza, caráter e hombridade.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 04/09/2012
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