O UNIVERSO CINEMATOGRÁFICO DE ALMODÓVAR: UMA LEITURA INTERTEXTUAL DO FILME ABRAÇOS PARTIDOS
“É ilusão dos parvos ou ignorantes acreditarem que possuem tesouros de originalidade, e que aquilo que pensam, ou dizem, nunca foi antes pensado ou dito por ninguém” (Fernandes Pinheiro).
RESUMO
Este artigo se propõe a fazer uma “leitura” intertextual do filme Abraços Partidos do cineasta e roteirista espanhol Pedro Almodóvar. Bem como, discorrer sobre suas influências na cena cultural contemporânea, além das características que perfazem e modelam a sua obra autoral, estilo este que nunca foi abandonado ao longo de sua carreira, e sim aprimorado e esgrimido com rigor e apuro técnico de um experiente realizador.
PALAVRAS-CHAVE: Abraços Partidos: Pedro Almodóvar; intertextualidade; metanarrativa; Pop Art.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 07
2. INTERTEXTUALIDADE 12
3. TUDO SOBRE ALMODÓVAR 15
3.1 ALMODÓVAR NA ESTEIRA DA POP ART 16
3.2 A TELA DE ALMODÓVAR 20
3.3 FEMINILIDADE 22
4. ANÁLISE DO FILME ABRAÇOS PARTIDOS 23
4.1 A TRAMA 23
4.2 CENAS 24
4.3 NARRATIVA 25
4.4 JOGO INTERTEXTUAL 27
4.5 METÁFORAS 29
4.6 A ESTÉTICA KITSCH 30
4.7 O NOME DO FILME 30
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 32
6. REFERÊNCIAS 33
1.INTRODUÇÃO
A intertextualidade está presente na linguagem cinematográfica desde que o cinema surgiu no finalzinho do século dezenove, como ainda não havia som, a invenção recebeu a alcunha de “cinema mudo”. Quando os atores falavam, na tela aparecia uma legenda textual para explicar o diálogo, Charles Chaplin foi a maior expressão não “verbal” do cinema mudo. Muitos diretores utilizam o recurso do intertexto para incrementar seus filmes e os fazem por meio de citações e referências a outras obras e autores que lhes são caros, todavia essa apropriação dos discursos intertextuais não é prerrogativa de Pedro Almodóvar, contudo ele melhor do que ninguém soube usar a metanarrativa como ferramenta estilística para robustecer a sua obra, lançando mão da intertextualidade como manancial criativo, cravando no mainstream seu selo de qualidade, e assim, tornando-se uma grife sinônimo de originalidade.
Este artigo não pretende dissecar todos os meandros da intertextualidade linguística com aplicabilidade no campo literário, não será posto em discussão, por exemplo, a diferença entre paródia, plágio e pastiche. Mesmo porque na literatura, nas artes e especificamente no cinema o pastiche pode deixar de ser uma imitação grosseira para ser uma colagem estilística que pertence a um determinado autor. Talvez a tênue fronteira que separa o plágio da paródia e do pastiche seja o bom senso e o bom gosto, que se faz com a intenção bem calculada do realizador.
A referência intencional pode ser uma forma que muitos diretores encontram para homenagear seus ídolos em determinado campo das artes. Pode-se citar como um típico exemplo de intertextualidade no cinema a cena em que um carrinho de bebê desce uma escadaria numa chuva de balas, no filme Os Intocáveis, de Brian De Palma, nota-se aí uma clara alusão à obra O Encouraçado Potemkin do russo Serguei Eisenstein.
A série cômica Todo Mundo Em Pânico faz uma incursão pela paródia. Através de situações caricatas ela desconstrói a fórmula de sucesso de filmes que vão do terror à ficção científica como fez com o megassucesso Matrix. Nesses dois exemplos o uso da intertextualidade é um artifício que linguagem cinematográfica se apropriou. E para que ela efetivamente se concretize é necessário um prévio conhecimento (nesse caso) do espectador que estará apto a decodificar os signos do discurso fílmico. Caso contrário tanto a homenagem no primeiro exemplo, quanto a piada no segundo, vão passar despercebidas e isso invalidará a intenção do autor, pois ele não foi compreendido em toda sua concepção.
O que se pode deduzir é que o público de Almodóvar é intelectualizado, seus admiradores no mínimo têm uma cultura cinematográfica acima da média. Portanto, este espectador-consumidor é capaz de absorver as múltiplas referências intertextuais presentes na sua obra. As citações vão desde elementos da cultura pop, a autores que o influenciaram ao longo de sua carreira artística.
A intertextualidade é uma ferramenta que permite aos criadores homenagear autores que lhes são caros, como também reciclar conceitos, estilos e fórmulas que fizeram grande sucesso no passado ou que são referências como obras-primas. No caso do cinema quando um cineasta faz uma referência a um determinado autor, prestando-lhe uma homenagem, principalmente, quando o homenageado é um ícone da sétima arte, ele mostra cultura e conhecimento do ofício que está manejando. No entanto, a metanarrativa deve ser inserida no contexto fílmico de forma inteligente e bem calculada, para não se tornar um pastiche, nesse caso uma imitação grosseira de um produto cultural já existente. Transitar nessa linha fina com desenvoltura e elegância é habilidade para poucos. A genialidade de um realizador reside justamente na sua maestria de jogar no limite, não ultrapassar a delicada fronteira que separa o senso estético-criativo do plágio.
A retomada de conceitos e estilos, a reedição da linguagem cinematográfica faz parte da dinâmica intertextual. A intertextualidade retroalimenta a criatividade dos autores. A arte e a cultura popular são feitas de incorporações e entrelaçamentos de múltiplos elementos, portanto a tese do “purismo” cai por terra. A originalidade é justamente a habilidade que um autor tem em manejar os recursos que lhes estão disponíveis no vórtice cultural para criar sua obra, montando seu mosaico através dos possíveis cruzamentos estéticos.
Desses cruzamentos estéticos nascem produtos híbridos que sofreram influências até mesmo de outras culturas. Conclui-se também, que não existe pureza cultural, mas sim incorporações, absorções e principalmente interseções. Sobre esta tese Stuart Hall faz a seguinte ponderação:
Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns no mundo globalizado.” (HALL, 2006, p.88)
As trocas culturais são possíveis graças ao crescente processo de globalização, entende-se globalização não como um fenômeno recente, mas como um movimento iniciado nos séculos XV e XVI com as Grandes Navegações e Descobertas Marítimas. Neste panorama histórico, o homem europeu entrou em contato com outros povos, estabelecendo relações comerciais e culturais. Atualmente vivemos na era da globalização digital, na qual os intercâmbios culturais se processam de forma infinitamente célere e instantânea.
Graças à globalização a intertextualidade pode ser melhor assimilada, através dos meios de comunicação e principalmente da internet, ferramenta poderosa na difusão do hipertexto e do intertexto. A rede mundial de computadores é um gigantesco caldeirão multicultural onde, a todo instante, misturas e experimentos são feitos com instantaneidade nunca antes vistos. Essa liquidez na transmissão e recepção de conteúdos possibilita um diálogo (interatividade) entre o receptor e a obra no que se refere à interpretação da mensagem em suas diversas extensões. A internet congrega todas as formas de manifestações artísticas e culturais, em alguns casos, um produto para obter sucesso precisa, em primeira instância, figurar na rede e ser aprovado pelos internautas, assim sendo, o número de acessos determina suas chances de sucesso.
Atualmente, a indústria cinematográfica se apropriou da intertextualidade para ampliar a linguagem do cinema tradicional, através da incorporação das novas tecnologias, disponibilizando ao público uma diversidade de texto e hiperlinks, multiplicidade de ferramentas que o receptor está acostumado a encontrar abundantemente nos ambientes digitais expandidos (internet). Portanto, essa miscigenação de linguagens, o hibridismo de técnicas, proporciona a obra audiovisual uma estrutura que oferece ao espectador formas diversificadas de recepção. Insere-se nessa linha o filme Sin City de Robert Rodriguez e Frank Miller, que mistura diferentes linguagens semióticas como as histórias em quadrinhos, o cinema e as novas tecnologias digitais.
Sobre esta temática escreveu a doutora em comunicação e professora da Universidade Metodista de São Paulo Elizabeth Moraes Gonçalves. Em seu trabalho intitulado “A Intertextualidade no Cinema: uma opção de hibridismo de linguagem” ela e o jornalista Denis Porto Renó analisam o impacto das novas tecnologias no cinema tradicional e como essa estrutura híbrida funciona.
Esse fato pode ser abordado a partir dos conceitos que envolvem a característica líquida, descrita por Bauman (2001) e pela pós-humanidade definida por Santaella(2007), em que a estrutura passa a ser indefinida e possível de ser moldada pelos receptores, agora também usuários (ELIZABETH;RENÓ, 2009, p.2).
A intertextualidade no filme Abraços Partidos não se refere ao hibridismo de técnicas digitais, e não é sobre este recorte intertextual que esse artigo vai discorrer. Este trabalho faz um estudo analítico sobre a presença do intertexto nesta obra especificamente, como também dos maneirismos que caracterizam o autor. Analisa a habilidade que Almodóvar tem em fazer citações, referências e autorreferências.
A metalinguagem explícita de Abraços Partidos (um filme dentro do outro filme), as citações constantes a outros filmes e elementos pop revelam um homem obcecado em pulverizar em sua obra suas influências culturais.
Este artigo mostra ainda como sucedeu a construção do ícone Almodóvar. Em que fonte bebeu, quais os movimentos culturais que se nutriu para forjar sua própria estética. Além de fazer um passeio por sua biografia para entender a personalidade de um gênio criador que consegue ser brega e ao mesmo tempo chique, cult e seminal.
Pontua nas cenas a presença implícita e sutil da intertextualidade, disseca as metáforas que ajudam a dar sentido e valor conceitual ao seu produto. Este trabalho não tem respostas para questões tais: Como o kitsch é tão marcante em seus filmes? Por que há sempre a presença cativa da cor vermelha? Como os sentimentos das suas personagens são tão avassaladores? Por que a presença recorrente desses elementos que compõem o universo almodovariano não se torna enfadonho?
Talvez Almodóvar seja um bruxo que sabe dosar, com muita maestria, as poções mágicas no caldeirão da sétima arte. Ele não apresenta fórmulas inéditas ao grande público. Sua originalidade consiste justamente na sua habilidade de fazer as misturas certas: tempera seus filmes com paixão, sensualidade, humor, drama, situações inusitadas e metalinguagem.
Estes recursos empregados por Almodóvar em sua filmografia reforçam seu clássico maneirismo. Ele faz isso intencionalmente para extrair de suas obras maior emoção, conflito e tensão. Essa repetição de elementos e a utilização da intertextualidade denotam seu virtuosismo estético, estilo pessoal que o distingue dos demais realizadores.
2. INTERTEXTUALIDADE
Entende-se intertextualidade como um diálogo entre textos, leia-se texto: produto cultural com conotações amplas e abrangentes, não se restringindo apenas a um texto literário, e sim a produções de outras áreas do conhecimento, como as artes plásticas, a música, a fotografia, a publicidade, o cinema etc.
A intertextualidade é recorrente na publicidade, a exemplo, dos comerciais da Bombril, suas peças publicitárias para a TV transformaram-se em verdadeiros clássicos do gênero. No teatro baiano, as montagens da Companhia Baiana de Patifaria são ricas em citações, assim como no cinema: a série Sherek é pródiga em referências satírica aos contos infantis, aliás, as comédias são fontes inesgotáveis de intertexto. O filme Sex and The City 2 lança mão desse recurso aplicando-o pontual e inteligentemente. Sem falar, é claro, dos vídeos-clipes da cantora Lady Gaga: verdadeiras construções transtextuais, bricolagem audiovisual de elementos da iconografia pop. Gaga, aliás, pode ser considerada o Almodóvar da música.
No campo linguístico o termo intertextualidade foi cunhado pela semioticista Julia Kristeva a partir do conceito bakhtiniano de dialogismo. Para Samira Chalhub “A intertextualidade é uma forma de metalinguagem que se toma como referência uma linguagem anterior” (apud CONFORTE, 2002, p.52). Como afirma Gerárd Genette a intertextualidade é a “relação de co-presença entre dois ou vários textos, que se concretiza, mais frequentemente, pela presença efetiva de um texto em outro”.
Em seu livro “A Análise da Narrativa” Yves Reuter fala que toda narrativa se inscreve em uma cultura. Portanto, ela não só remete às realidades extralinguísticas do mundo, mas também a outros textos, escritos ou orais, que a precedem ou acompanham e que são retomados, imitados e modificados por ela.
De acordo com essas preposições o intertexto seria, então, um processo de retomada de textos pré-existentes que ganharam “releituras”, que foram transformados, readaptados, reconfigurados e atualizados conforte a necessidade do novo produto que surge dessa interdiscursividade, uma vez que o texto está em permanente diálogo com outros textos, num jogo de reenvios de discursos que se mantém conectados através da memória coletiva.
Dentro da visão da linguística textual Ingedore G. Villaça Koch endossa a teoria de que a “intertextualidade compreende as diversas maneiras pelas quais a produção/ recepção de um dado texto depende do conhecimento de outros textos por parte dos interlocutores,” (2004 p.42,).
Seguindo seu raciocínio a intertextualidade, em sentido restrito, refere-se à intenção do locutor de produzir uma manifestação linguística coesa e coerente, ainda que esta intenção nem sempre se realize integralmente. Para tanto existem, ainda, casos em que o produtor do texto afrouxa deliberadamente a coerência, com o fim de obter efeitos específicos.
A intertextualidade tem a função de sedimentar conceitos e difundir a cultura, mas é necessário que haja um prévio conhecimento de quem vai fazer esta leitura, este pacto silencioso deve ser estabelecido, faz parte da regra. Caso seja quebrado, rompe-se o acordo e a intertextualidade tem seu papel esvaziado, pois o leitor não tinha lastro cultural suficiente para apreender o conteúdo, muitas vezes, forjado nos interstícios do texto de forma sutil e implícita.
O texto joga com a tradição, com a biblioteca, mas em vários níveis, implícitos ou explícitos. Certas obras estabelecem uma relação tão diversificada com a biblioteca que pode parecer necessário sair do procedimento da poética descritiva para entrar numa interpretação mais global do sistema de multiplicidade dos textos. (SAMOYAULT, 2008, p.45).
Mas para isso o leitor deve ter um amplo lastro cultural para fazer estes empréstimos e contextualizações propostos pelo intertexto. Como analisa Reuter:
Essa importância da cultura do leitor para a apreensão dos empréstimos é válida tanto para os escritos de séculos anteriores, cujo intertexto não nos é familiar, quanto para os romances contemporâneos que certos autores se divertem em rechear de referências mais ou menos acessíveis”.( REUTER, 200, p.169).
Tanto na literatura quanto no cinema a intertextualidade tem seus códigos de linguagem, a linguagem não é apenas um processo de interação verbal, oral ou escrita como propõe os estudos linguísticos, mas também toda e qualquer manifestação artística regida por leis internas e específicas. No que se refere à linguagem cinematográfica, entende-se que o cinema tem seu próprio sistema de signos, estes articulam entre si para construir uma realidade ou representá-la, com o propósito deliberado de produzir no espectador um efeito de encantamento e mexer com suas emoções.
A intertextualidade opera com dois tipos de reenvios: o interno (quando o autor cita sua própria obra) ou externo quando a citação refere-se a outro autor. Em seus filmes Almodóvar se utiliza dos dois artifícios interdiscursivos, ou seja, costuma citar sua própria obra (autorreferência) e de outros autores, além de jogar abundantemente com referências transtextuais da cultura pop.
De uma forma mais literal e direta a intertextualidade sempre esteve presente na linguagem cinematográfica desde o cinema mudo. Os textos escritos na tela serviam para ampliar o significado das cenas e explicar o próprio conteúdo fílmico. Com o aprimoramento técnico e o surgimento das novas tecnologias o intertexto, que antes era um elemento imprescindível para dar coerência ao filme, nos tempos atuais ele funciona como um plus para enriquecer a arte audiovisual que ganha status de cult.
Sem a necessidade de ser tão obviamente explicativo como era em seus primórdios, o cinema se reinventa, lança mão dos recursos tecnológicos e se transforma numa espécie de intertexto híbrido potencializado pelas novas tecnologias digitais. Assim sendo, na atualidade não é mais novidade a mistura de imagens tradicionais com animações. O processo é meio surreal, como se as histórias em quadrinhos transmutassem em fotogramas e saltassem para as telas das salas de projeções.
Dessa forma as novas tecnologias funcionam como poderosas ferramentas que facilitam e possibilitam aos realizadores vias alternativas de criação, sem alterar a narrativa tradicional, apenas incrementando-a com outras linguagens hi-tech, ampliando seus significados.
Mas como já foi ressaltado não é esse tipo de intertextualidade que vai ser tratado neste artigo, mas sim das diferentes metalinguagens propostas por Almodóvar em seus filmes como as citações, as referências, empréstimos de outras obras e autorreferências, ou seja, uma intertextualidade sem obviedade, mais sutil, cult que exige do espectador um prévio conhecimento para detectar os signos que perpassam estrategicamente suas produções.
3. TUDO SOBRE ALMODÓVAR
Pedro Almodóvar é o mais aclamado diretor espanhol desde Luiz Buñuel e foi uma das engrenagens da “La Movida Madrileña ” (movimento contracultural lançado em Madri após a morte do ditador Francisco Franco). Almodóvar iniciou sua carreira artística no teatro e nos movimentos vanguardistas, em contato com as correntes alternativas do momento, nas quais ingressou por afinidade e com uma visão cinematográfica peculiar, transformou-se no estandarte dessa onda de renovação cultural espanhola.
Homossexual assumido, o cineasta nasceu em uma família humilde (filho de um enólogo e uma dona de casa) em 25 de setembro de 1949, em Calzada de Calatrava, uma pequena localidade na província da Cidade Real. Aos 16 anos mudou-se para Madri, com o propósito de estudar cinema. Como não tinha dinheiro para financiar seus estudos, trabalhou um período para a companhia telefônica estatal espanhola. A fim de ingressar no mundo artístico, fez de tudo um pouco, inclusive se aventurou como vocalista de uma banda de rock. No final dos anos 70 escreveu e colaborou com revistas de contracultura como “Star”, “Vibora e Vibraciones”. Nesta mesma época, com ajuda financeira dos amigos, começou a rodar seus primeiros curtas em Super 8, levando-os para serem exibidos em Madri e Barcelona. Publicou algumas novelas pornôs, entre elas “Fuego em Lãs Entrañas”.
Seu primeiro longa-metragem foi rodado em 1980 e se chamou Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas Del Montón. Esta película foi feita com um orçamento baixíssimo para as produções da época. Ele Fazia a sonoplastia no momento da projeção, este filme foi o ponto de partida definitivo do estilo Almodóvar, tanto na forma como no conteúdo.
Nessa produção já aparecem todos os elementos característicos dos trabalhos seguintes (Labirinto de Paixões, 1982; Maus Hábitos, 1983; Que Eu Fiz para Merecer Isto?, 1984; Matador, 1986; A Lei do Desejo, 1986), que já estavam presentes em alguns de seus curtas-metragens: os irmãos, a mulher, as donas de casa, as relações conjugais turbulentas, a moça supermoderna, os anúncios, a música, as fotos, as janelas, os movimentos de câmara extravagantes, a paisagem urbana (Madri), os ambientes kitsch, a amizade entre mulheres, a homossexualidade, a transexualidade, a depravação, o absurdo ao estilo Luis Buñuel. Em 1985, junto com o seu irmão, cria a produtora ?El Deseo? Que atualmente produz seus filmes e de outros cineastas do quilate de Alex de La Iglesia e Guillermo Del Toro.
Com o filme Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), ele rompe um pouco com seu cinema anterior, mas de um modo coerente: abandona o frívolo e o miserável e passa a valorizar o sofisticado e elegante, sem deixar de ser ele próprio, isso fica patente em filmes como Ata-me (1989), De Salto Alto (1991), Kika (1993), A Flor do Meu Segredo (1995) ou Carne Trêmula (1997). Almodóvar transformou-se no mais popular cineasta espanhol e com maior projeção internacional, ainda mais depois de Tudo sobre Minha Mãe (1999), que lhe rendeu o Oscar de melhor filme estrangeiro. Em 2002 arrebatou mais uma estatueta da Academia Norte-americana com o melhor roteiro original do filme Fale com Ela.
Sua primeira indicação a um prêmio de cinema aconteceu em 1988, quando o filme Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, foi indicado ao BAFTA (uma premiação britânica). Desde então, Almodóvar já recebeu, entre indicações e premiações, mais de 40 menções em grandes festivais, o que faz dele o maior cineasta espanhol em atividade.
Com a morte de sua mãe, Almodóvar fez Volver (2006), como forma de se reconciliar com seu passado e voltar às suas origens, com este filme ele teve grande reconhecimento nacional e internacional.
Em 2009 lança "Abraços Partidos", embora sem muitos apelos nonsenses e maneirismos, que lhes são característicos, o longa é mais uma obra repleta de drama e sutilezas. "A Pele Que Habito" lançado em 2011, ele retoma o gênero (terror e suspense). O enredo gira em torno de um cirurgião plástico que depois de perder sua esposa num acidente de carro, no qual ela teve o corpo queimado, ele fica obcecado para criar uma pele perfeita em laboratório, a partir de DNA humano e de suíno. As produções subsequentes são: " Os Amantes Passageiros"(2013), "Relatos Selvagens (2014) e Julieta (2016)
3.1 ALMODÓVAR NA ESTEIRA DA POP ART
Almodóvar ainda era adolescente quando no início da década de 60 transcorria na Inglaterra a terceira fase da Pop Art inglesa com forte repercussão nos Estados Unidos e na Europa. A capital britânica soprava, para o resto do mundo, os novos ares da liberdade sexual tão almejada por jovens de várias nacionalidades. Neste contexto histórico surgem as relações frívolas, o culto ao corpo sem rosto e à estética kitsch , ocorre também o esvaziamento figurativo das estrelas do cinema e das pin–ups que se tornam ídolos sexuais comerciáveis, ou seja, em vez de poses sensuais que tinham como único propósito turbinar as fantasias sexuais masculina, transformaram-se em garotas propaganda de produtos da sociedade de consumo.
A Pop Art operava com signos estéticos massificados, sua iconografia era o cinema, os quadrinhos, a televisão e a publicidade. Aparentemente descompromissada esta nova arte promovia uma crítica à sociedade de consumo, bombardeada freneticamente pelos produtos anunciados nos veículos de comunicação de massa.
A crítica neste contexto era um jogo dialético, ao mesmo tempo em que apontava distorções no processo de industrialização e consumismo, a Pop Art se nutria dos símbolos de consumo como fonte de inspiração, às vezes, até promovia o aumento deste ao transformar alguns produtos em obras de arte, como foi o caso das Sopas
Campbell, imortalizadas por Andy Warhol , um dos maiores expoentes desse movimento artístico. Além disso, muito do que era considerado brega, virou moda, e já que tanto o gosto, como a arte tem um determinado valor e significado conforme o contexto histórico em que se realiza, a Pop Art proporcionou a transformação do que era considerado vulgar, em refinado.
Uma das grandes virtudes da Pop Art foi aproximar a arte das massas. Promovendo a desmitificação, uma vez que se utilizava de objetos próprios do repertório da sociedade de consumo que, teoricamente, estava ao alcance de todos, pelo menos no imaginário coletivo. Ela evidencia traços de uma sociedade marcada pela industrialização, pela produção em série, pela instantaneidade e pela efemeridade. Os símbolos e produtos (carros, eletrodomésticos, sinais de trânsito, enlatados, estrelas do cinema etc.) dirigidos às massas são desconstruídos e reinventados. Um exemplo clássico, é a reprodução sequenciada, em variações cromáticas, da fotografia da atriz Marilyn Monroe.
Este trabalho tornou-se, em primeira instância, referência da Pop Art. Warhol entendia as personalidades públicas como figuras impessoais e vazias, apesar da ascensão social e do status de celebridade que lhes eram conferidos. Graça Proença, autora do livro História da Arte, corrobora com esta tese: “Com isso, o artista talvez quisesse mostrar que assim como os objetos são produzidos em série, os mitos contemporâneos também são manipulados para o consumo do grande público”.( PROENÇA, 2001, p. 170).
Esta arte pop repleta de intertextualidade é uma paródia da sociedade de consumo, é um mosaico que prima por cores saturadas, uma bricolagem de produtos que fazem parte do cotidiano autômato e industrializado.
Nos anos 80 Almodóvar reabilita os conceitos da Pop Art em seus trabalhos e marca seu nome na “calçada da fama” alternativa e underground que começa a se delinear na Espanha pós-franquista. Ele era a figura mais eminente do movimento contracultural chamado Movida Madrileña, surgido após o fim da ditadura. Contudo, a afirmação de Almodóvar, enquanto cineasta está relacionada ao processo de abertura cultural vivida pela Espanha com o fim da era Franco.
Com uma mistura talento e oportunismo, pois com o vácuo deixado no cinema espanhol com a morte de Luis Buñuel e a diluição criativa de Carlos Saura, Almodóvar definitivamente rouba a cena. Desde cedo se mostra audaz ao atacar instituições sagradas como a igreja e a família. Iconoclasta convicto se posiciona no front do anticlericalismo, passando a dessacralizar dogmas instituídos. Dessa forma, opta pelo humor irônico, grotesco e debochado.
Seus primeiros filmes no início da década de 80: Pepi, Luci e Bom e Labirinto de Paixões,por exemplo, evidenciam a liberdade sexual sem pudores, numa Madri onde tudo era permitido. Estas películas são comédias escrachadas e subversivas cheias de referências à cultura pop.
Aliás, referências e metalinguagem, intertextualidade, sexualidade (nas suas diversas nuanças), feminilidade, a estéticakitsch e comédias mescladas ao melodrama são elementos sempre presentes em suas obras que se transformaram em sua marca registrada.
3.2 A TELA DE ALMODÓVAR
O universo pintado pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar é uma tela colorida. Nesse painel multicor e polissêmico ele carrega nas tintas com o propósito de chocar, nela lança os sentimentos sem pudores, arrisca-se, desnuda-se, experimenta, sobretudo, premia o espectador com situações delirantes, porém catárticas. Possui grande habilidade em transformar o inverossímil no plausível. Intencionalmente fragiliza a fronteira entre o real e o absurdo.
Almodóvar filma com intensa paixão e faz desse sentimento o moto-perpétuo que o retroalimenta e o inspira no momento de criação. Sendo assim, primordialmente a emoção é o vórtice que o impulsiona e a força catalisadora de identificação no receptor.
O cineasta se apropria de discursos narrativos que tem como ênfase a produção de sentidos. Recursos metalinguísticos (referências e citações) são acionados para compor este multifacetado mosaico estético gestado por ele. Para o crítico de cinema Ruy Gardnier (1999) todo o alardeado "pós-modernismo" de Pedro Almodóvarnão diz respeito à outra coisa senão a sua agilidade em citar e em criar metanarrativas para comentar seu próprio filme. “Se Almodóvar tem compulsão a citar, é mais por amor de suas vivências de cinema do que por virtuosismo”. (GARDNIER, 1999).
Nada está descolado, nenhum elemento é apresentado despropositadamente, tudo tem uma razão de ser, a subversiva linguagem cinematográfica que explode, ricamente, na tela foi milimetricamente ensaiada, pois o objetivo do cineasta é causar estranhamento e revolver as emoções latentes no receptor que ele não quer passivo.
Para criar uma ambiência evocativa-emocional, Almodóvar se alicerça na estética kitsch que a transfigurou em brega, ou será que é o contrário? Só que este brega beira ao chique com um quê de intelectualidade intencional (proeza também conseguida por seu amigo Caetano Veloso quando, por exemplo, regrava sucessos de Peninha e Fernando Mendes).
O apuro estético da obra almodovariana subsiste justamente na transgressão, o desconforto causado, arbitrariamente, cria identificação. Habilmente, ele confronta o ser humano com suas próprias fragilidades e limitações.
A virtual incongruência estética de Almodóvar paradoxalmente é a chave de sua genialidade. Cenários impregnados de cores vibrantes (o vermelho é sua cor fetiche), figurinos extravagantes, personagens caricatos e trilha sonora deliciosamente brega traduzem a grife almodovariana.
Este traço peculiar da obra do cineasta é o ponto de contato que propicia a identificação do espectador com seus filmes. A estética criada por Almodóvar faz aflorar as emoções e dilata as percepções; com os sentidos aguçados o público torna-se mais apto a decodificar o “texto” e as mensagens emitidas pelo autor.
Almodóvar distorce o significado de grotesco que passa a ser sinônimo de burlesco, ingrediente necessário à tragicomédia, seu gênero predileto. Nada escapa à sua percepção: cenas cotidianas e prosaicas servem de inspiração para construir seus roteiros cheios de surpresas e reviravoltas. A previsibilidade é algo descartado da obra desse homem de mente convulsiva e seminal.
3.3 A FEMINILIDADE
Outro aspecto recorrente em sua obra é a feminilidade,nenhum cineasta entende tanto a alma feminina quanto ele. Os amores, as dores, os sentimentos avassaladores que dominam este universo sensível são retratados em seus filmes com propriedade arguta e inquestionável.
As mulheres de Almodóvar são loucas, apaixonadas, histéricas, como a Pepa (interpretada pela atriz Carrmen Maura) de Mulheres a Beira de Um Ataque de Nervos. Elas são ainda corajosas, batalhadoras, fortes, ou seja, condensam as qualidades e os defeitos que existem dentro de cada mulher.
No ritmo melódico do bolero, as heroínas dos filmes de Almodóvar vivem constantemente situações de traição, solidão, sofrimento e desespero. O espectador se identifica facilmente com as adoráveis mulheres almodovarianas, como a protagonista-título de Kika, a Marina de Ata-Me!,a Elena de Carne Trêmula, a Manuela, a Nina e a Hermana, de Tudo Sobre Minha Mãe, a Lydia e a Alicia, de Fale Com Ela.(VIEIRA, 2004).
Nas produções subsequentes tem-se ainda a Raimunda de Volver e a Lena de Abraços Partidos. Mesmo quando Almodóvar passa a focar o universo masculino como nos casos de Fale Com Ela,Abraços Partidose A Pele que Habito, o elemento feminino está no eixo da questão, porque o sofrimento do homem tem a mulher como causa.
Em Abraços Partidos, Almodóvar reabilita a figura do macho. Este filme representa uma nova fase do cineasta, não que ele sepulte os maneirismos, as cores vibrantes, os ícones da cultura kitsch e da Pop Art estes elementos são detectáveis na película, porém é uma obra que deixa patente a complexa maturidade intelectual do autor, pois, como disse o jornalista e escritor Paulo Nogueira , “em Abraços... ele fixa o caleidoscópio”. Se ele apruma o caleidoscópio, opta então por mergulhar definitivamente na intertextualidade.
4. ANÁLISE DO FILME ABRAÇOS PARTIDOS
Alguns elementos são recorrentes na obra do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, a exemplo da paixão desenfreada e sentimentos avassaladores que expõem os nervos da impotência humana diante das circunstâncias e situações vivenciadas pelas personagens mergulhadas em turbilhões de emoções que sobrepujam a racionalidade. Em nome de um amor sem freios todos os pecados são cometidos e justificados, seria uma espécie de visão romântica de “os fins justificam os meios” da lei maquiaveliana.
A overdose de paixão é o ponto fulcral das tramas almodovarianas , ela é a essência das personagens. É ela que alimenta a narrativa e toda teia dramática que resvala em alguns momentos em comédia, quase sempre, pelo viés esdrúxulo e inusitado.
Para construir suas histórias estapafúrdias, cheias de reviravoltas que beiram o nonsense (mas ao mesmo tempo prosaicas, portanto, de fácil assimilação e identificação com o público) Almodóvar lança mão de seu arcabouço cultural, vivências pessoais e experimentalismos, os quais transferem para suas produções. A metanarrativa, citações e autorreferências, elementos também frequentes em seus filmes, são frutos do seu processo de autoconhecimento e aprimoramento artístico.
O universo feminino frequentemente revisitado por Almodóvar em suas obras fica em segundo plano em Abraços Partidos, neste filme ele reabilita a figura do macho e expõe o drama de um homem vítima de seu trágico destino. A dor e a redenção características de suas personagens femininas e/ou homossexuais, agora são transferidas para o heterossexual sedutor impregnado de charme e sensualidade: o cineasta Mateo Blanco que adota o pseudônimo de Harry Caine.
4.1 A TRAMA
Em um trágico acidente de carro, o cineasta Mateo Blanco (LluísHomar) perde a visão e sua amada Lena (Penelópe Cruz). Depois da tragédia, ele sepulta o cineasta Mateo, adota o pseudônimo de Harry Caine e mergulha no universo literário para fazer sua catarse.
Catorze anos se passam e Caine sobrevive graças aos roteiros que escreve com a ajuda providencial de Judith (Blanca Portillo), sua amiga, que no passado era a diretora de produção de seus filmes. O filho dela Diego (Tamar Novas) tornara-se o fiel escudeiro do escritor, secretário particular, digitador e guia.
Desde o fatídico acidente, a figura do cineasta recolhe-se à sombra para dar lugar a persona do escritor. Quando Diego fica doente, na ausência da mãe, Caine se vê na obrigação de cuidá-lo. Em plena convalescência, o rapaz o indaga sobre seus tempos de cineasta. O homem que havia sepultado seu passado resolve exumá-lo para se libertar dos fantasmas que ainda o atormentam.
Judit é o exemplo clássico do estoicismo feminino, ama calada e tudo suporta. É a mulher leal, dedicada e que sempre esteve ao lado de Mateo/ Caine, mas nunca foi correspondida em seu amor. No passado eles se relacionaram uma única vez e ela engravidou.
Lena é secretária do rico empresário Ernesto Martel (José LuisGoméz), grata por ter pagado as despesas do hospital, no qual seu pai estava internado, casa-se com ele. O velho milionário a trata como princesa e realiza todos os seus desejos, inclusive o de ser atriz.
Martel se torna o produtor da primeira comédia de Mateo: Garotas e Malas e Lena, a estrela do filme. Com o propósito de vigiar a esposa, o empresário dá ao filho Ernesto Filho - que mais tarde adota o nome artístico de Raio X ( Rubén Ochandiano) - a incumbência de fazer o make off da película. O filho passa a ser os olhos do pai no set de filmagens.
“Abraços Partidos”, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar é uma convulsão de sentimentos explosivos. O filme aborda a paixão sem freios, o abuso de poder, a traição, o ciúme doentio e os recalques: ingredientes que alimentam a tragicidade deste drama que, em alguns momentos, flerta sutilmente com a comédia.
4.2 CENAS
Na primeira cena de Abraços Partidos o cineasta Mateo travestido na persona do escritor Harry Caine desfruta da companhia de uma moça linda e sensual que acabara de conhecer. Ela o ajudara a atravessar a rua, sob o pretexto de ler as notícias do jornal, para ele, a leva para seu apartamento. Em meio a um jogo de sedução, a jovem “caridosa” se deixa sucumbir pelos galanteios do homem solitário e acabam protagonizando uma bela cena de sexo.
O homem que perdera a visão e seu grande amor no passado sepultou seu lado de cineasta e assumiu definitivamente sua porção literária por meio da personagem que criara para si próprio. Agora Caine, que desenvolvera outras habilidades e aguçara outros sentidos, confiava literalmente no seu tato e em seu olfato para conquistar as mulheres.
Desencantado e amargurado, era incapaz de amar novamente, da vida só lhe sobrara os prazeres da carne, que este homem maduro queria aproveitar como se fosse seu último gole de vinho. O sexo era o antídoto contra a dor do amor que não podia ser mais restituído.
4.3 NARRATIVA
Depois de um breve diálogo entre Caine e a anônima, o filme passa a ser narrado pelo escritor que apresenta ao espectador a sua história. Por um breve momento a personagem assume o papel de narrador, para em seguida deixar que o filme assuma sua própria narrativa, ou seja, sem a interferência e a presença da voz mediadora do narrador.
A narrativa de Abraços Partidos está longe de ser simplex no sentido de ser linear, seguindo a linha de cineastas autorais Almodóvar opta pela narrativa complexa e multidirecional numa trama entremeada por flashbacks, na qual há confluência de histórias e dramas paralelos que compõem uma imbricada teia fílmica.
Gravitam em torno do drama da personagem principal (Mateo) dramas secundários pertencentes a outras personagens que, em certo momento da vida do protagonista, se tangenciam. Histórias que se interpenetram, mas ao mesmo tempo são autônomas e se autossustentam.
Judith a amiga fiel, secretária e produtora dos filmes de Mateo Blanco no passado, sofre por não ser correspondida em seus sentimentos, isto a torna amarga, mas não menos dedicada a seu amado, contenta-se em servi-lo. A resignação estóica dessa mulher é comovente, mesmo impassível, sua dor é sentida e compartilhada pelos espectadores, graças à atuação convincente de Blanca Portillo. Com maestria e genialidade Almodóvar sabe como nenhum outro cineasta usar em suas películas elementos que geram identificação: amor, paixão e dor são sentimentos universais, não perecíveis.
Diego, o filho de Judith, é fruto de uma única noite de amor dela com Mateo, mas para não obrigá-lo a ficar com ela apenas por este motivo, prefere conviver com este sufocante segredo a revelá-lo para as partes interessadas (pai e filho).
A relação entre Caine e Diego é cercada de admiração e respeito mútuos. Judith decide então selar definitivamente este amor entre ambos. Catorze anos depois, como presente de aniversário de Mateo, ela revela para eles que são pai e filho. Mais que um presente, ou revelação, o desabafo, depois de um porre colossal, representou a catarse de uma mulher que queria se libertar de um estado de espírito angustiante e ao mesmo tempo se redimir com filho e com o seu grande amor. A sua amargura acabou interferindo na sua afetividade para com Diego. “Perdoa-me filho pela amargura que fiz você conviver por todos esses anos”. Suplica Judith ao filho entre soluços doloridos.
Martel é a caricatura de um homem rico e solitário obcecado pela sua secretária, muitos anos mais jovem. Ele era cliente assíduo de uma agenciadora de garotas de programa, cujo casting, seu objeto de desejo fazia parte. Aqui Almodóvar toca na fragilidade masculina, a não aceitação dos seus limites, a falta de virilidade que é compensada pela jovialidade das parceiras. Homens maduros para se autoafirmarem costumam buscar mulheres mais novas. A juventude está ligada à beleza e, pelo viés antropológico, à fertilidade.
O drama de Martel não se limita à solidão e à decrepitude, o empresário, autoritário e poderoso, amarga o desgosto de ter um filho gay. Por outro lado Raio X sofre com a rejeição paterna, tenta seguir os passos do pai, porém fracassa, assim como seu progenitor acaba se casando duas vezes e se separando, desiste do intento de provar que é homem e assume definitivamente sua homossexualidade. Como vingança procura Harry Caine para escrever um roteiro sobre a história de um filho que quer se vingar do pai (ainda que morto).
A homossexualidade é outro tema caro a Almodóvar que em Abraços partidos, ele apenas toca tangencialmente. As atrapalhadas de Raio X, obcecado para se tornar um cineasta é fundamental para dar leveza e comicidade à obra.
Abraços Partidos essencialmente se insere na categoria do gênero dramático, sendo que em alguns momentos da trama o melodrama cede lugar à comédia. Almodóvar reitera a máxima de que toda tragédia guarda em seu íntimo um quê de comédia.
4.4 JOGO INTERTEXTUAL
Nenhum elemento nos filmes de Almodóvar está descolado, cada take aparentemente sem sentido, traz em si um propósito. Em Abraços Partidos as citações se apresentam num amplo leque cultural, vão desde referências à cultura pop, como é o caso da mochila com a logomarca dos Rolling Stones usada por Diego numa cena em que ele chega à casa do escritor, até citações no contexto diegético a seus autores e escritores preferidos.
Numa determinada cena Caine fala à Judith que quer fazer um roteiro baseado num episódio da vida do dramaturgo Arthur Miller (ex marido da atriz Marilyn Monroe). Na vida real Miller teve um filho com síndrome de down que nunca o assumiu. Mesmo sendo rejeitado, o filho de Miller o perdoou e ainda confessou para ele que o amava e sentia orgulho dele. Apropriando-se deste fato inusitado, o roteirista cego queria contar uma história de amor sublime e de superação, corroborando com a tese de que o amor tudo suporta e tudo perdoa.
Em outra cena Judith aparece conversando com o filho em seu quarto, ela arruma as malas para ir a Hollywood negociar com produtores sobre o novo roteiro de Caine. De forma prosaica e despretensiosa ela pede ao filho para lhe passar um livro que está no criado-mudo: o autor é o poeta, escritor e roteirista italiano Tonino Guerra.
Guerra já trabalhou com realizadores de diferentes identidades estéticas entre eles estão Vittorio De Sica, Michelangelo Antonioni, Theo Angelopulous, Federico Fellini, Francesco Rosi, dentre outros.
Almodóvar é um cineasta com o complexo de Narciso, seus filmes são repletos de autorreferência, citações e intertextualidade, ele narra aquilo que fez ou faz parte de seu universo.
Abraços partidos é essencialmente metanarrativa, pois se trata de um filme dentro do filme. Garotas e Malas do diretor Mateo Blanco é autocitação de Mulheres a Beira de Um ataque de Nervos. Mateo é, em certo ponto, o alterego de Almodóvar, cineasta autoral, criativo e relutante que não aceita interferência dos produtores em sua obra. Por sua vez, o pseudônimo do cineasta Mateo é uma clara alusão ao ator britânico Michael Caine, que ficou marcado na pele da personagem central do filme Vestida para Matar de Braian De Palma. Dessa forma as referências vão sendo pulverizadas com naturalidade ao longo do filme.
Mais uma vez Almodóvar faz citações a filmes e a diretores que lhes são caros, em Abraços Partidos ele expõe sua cinefilia através de Viagem à Itália (Roberto Rosselini). Os dois amantes (Mateo e Lena) assistem abraçados e emocionados a obra-prima do diretor italiano.
A cinefilia almodovariana prossegue em outras cenas, explícita e implicitamente, ela perpassa todo o longa por meio das referências do mundo da sétima arte. No set de Garotas e Malas Lena fez vários testes de caracterização para sua personagem, com uma peruca platinada se transformou em Marilyn Monroe, quando interpretou uma modelo no filme
O Pecado Mora ao Lado (Billy Wilder), a loira sexy symbol. Em seguida se transmuta em Audrey Hepburn do filme Bonequinha de Luxo (E. Blake).
As semelhanças entre Lena e Holly, personagem de Hepburn em Bonequinha de Luxo, não são apenas físicas. Assim como Holly, garota de programa, Lena - nas horas vagas - também “fazia vida” antes de se casar com o patrão milionário. Penélope Cruz encarna uma personagem sensual, forte e sonhadora.
Lena, uma mulher vibrante, ama os pais e por eles está disposta a fazer qualquer coisa: se prostituir ou casar com um velho rico por dinheiro para ajudá-los financeiramente. Com Martel ela conhecera o luxo, experimentara de tudo que o dinheiro poderia lhe proporcionar, realizara seus sonhos e caprichos. A riqueza também a aprisionava a um homem que ela desprezava e sentia asco. Sua redenção era o amor imensurável que sentia por Mateo, amante e o homem de sua vida.
4.5 METÁFORAS
Numa cena de Garotas e Mala sem que a personagem da aspirante à atriz (Lena) está chorando na cozinha-cenário cortando um apetitoso tomate vermelho, um big close mostra o momento em que uma lágrima desliza pelo fruto, enquanto ele é partido ao meio. O tomate metaforicamente representa um coração dilacerado pela dor de um amor que se foi.
Nada escapa à capacidade inventiva de Almodóvar, criativo, ele usa e abusa de belas imagens aéreas da praia do Golfo, em última análise, quem sabe, não pretendia mostrar a pequenez dos amantes fujões que passam incólumes por aquela imensa paisagem tão cheia de mistérios e encantos.
A sobreposição de imagens também não é aleatória, está prenhe de sentido, gestada intencionalmente para incomodar o espectador: um rolo de filme que se desenrola na máquina, a medida que se funde com a imagem de Mateo descendo uma longa escada em formato de caracol gera desconforto e muito suspense.
Ao mesmo tempo em que Almodóvar provoca o espectador com cenas incômodas ele resguarda seu público daquilo que pode lhe causar intolerância, nesse jogo dialético, na base do "morde e assopra", ele priva o espectador da cena de sexo entre Lena e Martel. Para camuflá-la ele usa o recurso do lençol, escondendo os corpos dos amantes. Já nas cenas românticas entre a atriz e o cineasta, existem erotismo e muita sensualidade e o espectador pode compartilhar do desejo carnal (da química hormonal) que há entre ambos, existe um pacto de conivência entre as personagens e o público que torce pelo romance dos dois, cumplicidade esta que não ocorre com o relacionamento amoroso entre o velho empresário e sua jovem esposa. O lençol é o véu da rejeição, é como se ele amenizasse o asco que Lena sente pelo marido.
Almodóvar mostra grande domínio em utilizar recursos da linguagem cinematográfica na narratologia fílmica, ele é hábil no manejo dos closes e big closes para criar sentido e poesia numa determinada cena. No início de AbraçosPartidos enquadramentos de rostos de mulheres e um big close de um olho feminino enchem a tela de graça e beleza. Sutilmente ele revela sua discreta homenagem ao universo feminino, uma vez que nesta obra ele se volta para o drama do sexo masculino.
O apuro técnico de Abraços Partidos revela o amadurecimento de Almodóvar enquanto cineasta. Neste trabalho ele não abandona em definitivo os elementos que o identificam e o tornam único, porém soube dosá-los em contextos apropriados ao longo da narrativa.
4.6 A ESTÉTICA KITSCH
Em Abraços Partidos o kitsch está exposto na decoração da sala de jantar do rico Martel, onde um quadro enorme ao estilo “natureza morta” retrata um punhado de frutas esmaecidas. Ao cenário brega foi acrescido enfeites de uvas de prata sobre a mesa. No set de filmagens de Garotas e Malas, o kitsch chega a ser over, tudo grita escandalosamente cafona: as roupas, os móveis e objetos do cenário, assim como a maquiagem das personagens.
O vermelho, a cor fetiche de Almodóvar, estava mais viva do que nunca, no batom, na roupa e nos sapatos de Lena. A cor está associada à paixão e ao desejo, metáfora que não escapa à sensibilidade do cineasta que sempre a insere no seu contexto fílmico, com intenções bem calculadas de mexer com os sentimentos do espectador.
4.7 O NOME DO FILME
O abraço é a expressão mais genuína e vigorosa de carinho, amor e proteção. A neurociência atesta que um abraço pode curar inúmeras doenças, inclusive a depressão. Quando faltam palavras o abraço fala ao coração, no ato de se abraçar há uma intensa troca de energia benéfica. Neste contexto, Almodóvar mais uma vez utilizou a metáfora para mexer com os sentimentos dos espectadores. Abraços partidos são momentos mágicos interrompidos. Ao longo do filme ele dá várias pistas a respeito disso.
Quando eles fogem para o litoral espanhol para viver intensamente um amor, até então sufocado e proibido, Mateo estaciona na estrada e aproveita a ocasião para fotografar a praia do Golfo. Sem perceber capta um momento revelador: as lentes registraram um abraço de um casal apaixonado no imenso vazio da paisagem. A bela imagem só vai ser percebida no hotel quando o cineasta comenta com sua Lena.
No balneário de Famara quando Mateo e Lena assistiam ao filme Viagem à Itália, a cena da visita de Alex e Katherine (respectivos personagens de George Sanders e Ingrid Bergman) ao museu de Nápoles em que mostra a perturbação da mulher diante dos corpos calcinados de um casal que morrera abraçado, há dois mil anos, por causa da erupção do Vesúvio na cidade de Pompéia, tocou profundamente em Lena. Mateo aproveita a emoção da amada para registrar com a câmara fotográfica aquele momento entre eles se abraçando na poltrona em frente a TV.
Depois do acidente de carro em que Lena morre, esta fotografia aparece rasgada em vários pedaços na lixeira do hotel onde os amantes estavam hospedados. Emblematicamente mais um abraço foi partido e mais uma história de amor foi interrompida.
É nesse jogo intertextual com doses cavalares de paixão que Almodóvar constrói sua trama, costura sua colcha de retalhos fílmica, impregnada de emoção e tragicidade. O longa Abraços Partidos é a síntese de tudo o que representa o autor: poliédrico, camaleônico, multifacetado que com uma sensibilidade que lhe é peculiar, premia seus espectadores com belas cenas imagéticas, carregadas de simbologias e metáforas.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depois dessa leitura fílmica conclui-se que a intertextualidade no cinema não é uma ferramenta nova, que sempre foi utilizada de acordo com as conveniências e necessidades de cada época e que Almodóvar não é o único autor a se utilizar desse recurso, mas ele o faz com coerência e segurança de quem sabe manejar o ofício. Que a sua originalidade reside na sua habilidade de congregar múltiplos elementos e construir um produto ímpar que caracteriza seu estilo autoral.
Percebe-se, contudo, que a intertextualidade na sua obra não é apenas um adereço, é um forte elemento que confere sentido a teia fílmica. Ela está infiltrada sutilmente, e, às vezes, explicitamente em cada cena. Fica patente nesse artigo que a pluralidade e versatilidade do autor traduzem a polissemia de Abraços Partidos.
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