Heleno (publicado originalmente em 14/8/2012)
Eu acho engraçado como certas imagens ou mensagens ficam em nosso inconsciente. De uma para a outra, assim de repente, parece estar no nosso cotidiano, ou aquilo de ‘já tinha ouvido falar de você antes’ vem à tona. Que me lembre, a primeira vez que ouvi falar em Heleno de Freitas foi por aí, numa revista ou jornal, por causa do lançamento do livro ‘Nunca Houve um Homem como Heleno’, de Marcos Eduardo Neves. O sentimento de ‘dejavú’ era porque, também não sei aonde, havia lido ou escutado alguma coisa sobre este homem, o Heleno, não o Marcos. E de pronto, sabia de sua história trágica, de seus complexos, raiva na pele, a amor incondicional pelo Botafogo, acima de tudo e todos.
Demorou, mas comprei o tal livro. Ou melhor, ganhei-o. Li-o em uns três dias. A biografia me fascinou. Neves conseguiu esmiuçar todos os degraus da vida bagunçada de Heleno. Descobriu qual foi a razão de sua morte precoce, a sífilis. Então, conheci aquela personagem fixada nas próprias iras, devaneios. Heleno não repartia amores nem ódios. Seu ego era tão grande ou maior que o Maracanã, estádio no qual atuou por menos minutos do que a sua tranquilidade. No apito do juiz, embasbacado, a ‘Gilda’ esbugalhou os olhos e admirou o espaço, os redores. Estava bobo com tamanha imponência, maior que a dele mesmo, deve ter admitido. Louco, praticamente sozinho, doente, dependente, se foi aos 39 anos, em 1959. Mais de meio século após a morte, a reverência a ele persiste, principalmente, claro, nos alvinegros da estrela solitária, e nos fãs da pelota, como eu, flutuando em suas lembranças.
Ano passado, o diretor José Henrique Fonseca decidiu estampar a vida de Heleno de Freitas nas telonas. Que presente a Heleno! Como ele se sentiria se vendo ali, em tamanho gigante, e sendo ovacionado e aplaudido, e sem ter de mostrar o futebol de garra canina de outrora. Fonseca escalou Rodrigo Santoro para dar vida e ar ao craque dos anos 1940. O ator se superou em todos os sentidos para as filmagens. Emagreceu, treinou futebol, enfeiou-se. Este é o ingrediente principal a qualquer ator bonito, parece, para atingir o sucesso e provar-se como bom profissional: tornar-se feio. Aliás, é de Tom Jobim a frase ‘o brasileiro não aceita o sucesso’. Com Alinne Moraes e Angie Cepeda como as duas amantes, ‘Heleno’ veio para ficar na mente do público. Um aceno ao bom cinema brasileiro, o sem favela, espancamento. Não que isso seja dispensável, mas hoje em dia dá impressão de que filme no Brasil deve pagar imposto em cada cena onde estejam as inglórias da terra. E são muitas, de fato.
‘Heleno’ é Rodrigo Santoro e mais dez. Os serviços de figurino, maquiagem, direção de arte e fotografia tiveram a sutileza, a delicadeza. Por isto o longa-metragem em preto-e-branco finalizou-se satisfatoriamente bem. O resultado é extraordinário no sentido de acabamento. A moldura está bem adequada, mas a pintura deixa a desejar. O roteiro possui pouco das brigas de Heleno nos gramados. Tem, porém queremos mais da verve, da violência física e psicológica. Heleno humilhava os colegas. Não deixava passar erros de passe, cruzamentos, chutes. Descascava o parceiro vivo se fosse preciso. E na frente de todo mundo. Era o ‘Heleno sem medo’, antes de João Saldanha fazer fama. Psicótico.
Era o top da década de 1940 e iria obviamente estar no escrete tupiniquim nos Mundiais de 1942 e 1946. Todavia, a Segunda Guerra Mundial o pôs para escanteio. No torneio de 1950, realizado no Brasil, o técnico Flávio Costa discordava (quem não?) do temperamento de Heleno e deixou-o de lado. Começava a morrer então o ídolo, o ser humano fraco. E iniciava a construção do mito: a lenda.