Anjo desnudo (publicado originalmente em 31/7/2012)
No começo de 2012, ou no final de 2011, não sei exatamente quando, Carlos Fico, historiador da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), estava no Arquivo Nacional dos EUA e, também não posso precisar se propositalmente ou não, se deparou com ‘Fragmentos de Dois Escritores’ (69). A fita, dirigida e roteirizada pelo húngaro-brasileiro João Bethencourt, estava no tal puro ostracismo durante décadas. Foi parar no YouTube, o site dos vídeos. Apenas semana passada o descobri, quase por acaso. São 24 minutos (é um curta-metragem) nos quais João conversa e filma dois escritores em ebulição na época– um inglês, outro brasileiro. Ninguém mais, ninguém menos do que Edward Albee e Nelson Rodrigues. O primeiro vinha do estouro de ‘Quem Tem Medo de Virginia Woolf?’, a peça de teatro que virou filme quatro anos após seu lançamento, em 1966 (foi tema desta coluna há algumas semanas). O segundo dispensa apresentações. Àquela altura, o ‘anjo pornográfico’ comemorava os 25 anos de ‘Vestido de Noiva’, a história revolucionária ao teatro nacional, e estava às voltas com ‘Toda Nudez Será Castigada’, peça de 65. Iniciara em 62 a escrever crônicas esportivas ao jornal ‘O Globo’.
Esquecerei de Albee. Focalizarei Nelson. As imagens fazem qualquer admirador se emocionar e querer além dos parcos minutos dali. J. Bethencourt capta o autor de ‘A Falecida’ na intimidade do lar, por exemplo. De pijama, sentado na cadeira da infame mesa da sala, bate ferozmente à máquina com os dois dedos indicadores. ‘Toda a minha obra teatral foi escrita no fim do dia, quando eu estava absolutamente estourado’, diz. Em outra, após tomar o remédio, segue metralhando a companheira dos escritos. Em off, na locução, conta ser o pior administrador da Terra e que nunca mais vai aceitar entrar em negócio financeiro algum, jamais mesmo. ‘Qualquer ceguinho me passa pra trás’, comenta.
O interessante das imagens é sua cor e a nitidez impressionante para 1968, ano de produção. Nelson está pintado, é real, ao vivo. Vemos as cores de suas camisas, gravatas, suspensórios, cigarros e fumaças. E um trecho do inexpugnável programa ‘Resenha Facit’, de debates sobre futebol, está na fita. E em cores! A atração tinha como comentaristas esportivos ‘só’ gente do calibre, além de Nelson, de João Saldanha, Armando Nogueira, Luís Mendes, Ademir Menezes (o ‘Queixada’, da Copa de 50), José Maria Scassa, Vitorino Vieira e Hans Henningsen (o ‘Marinheiro Sueco’). No vídeo, enquanto Nelson e Scassa discutem sobre a frase ‘nem todas as mulheres gostam de apanhar, só as normais e as neuróticas reagem’, notamos João Saldanha rindo, com cabelo engomado, às peripécias da dupla.
‘Fragmentos de Dois Escritores’ pega ainda Nelson fazendo a barba, tomando mingau, depois a sopa, para combater a sua úlcera. E temos Daniela, a ‘menina sem estrela’. Filha de Nelson e Lúcia, a criança nasceu cega, surda, muda. Ela surge na tela, ninada por Lúcia ao som de ‘boi da cara preta’. É a imagem mais intrigante, simultaneamente mais emocionante do curta. Enquanto a garota recebe o afago da mãe, o pai está à janela, tragando o Caporal Amarelinho, apreciando a noite. Talvez ele se perguntasse os porquês de sucessivas desgraças na vida. Talvez estivesse à janela só se conformando. E não posso esquecer das imagens de Nelson Rodrigues no Maracanã, assistindo ao jogo Brasil 2 x 2 Alemanha Ocidental, com Pelé em campo, em 14 de dezembro de 68, em meio à multidão incólume.
A descoberta de Fico veio bastante a calhar, pois no próximo 23 de agosto o país comemora o centenário de Nelson. Como escreveu Ruy Castro, biógrafo, ‘que beleza de documento’ é ‘Fragmentos de Dois Escritores’. O vídeo, como já citei, encontra-se no Youtube. Agora o nosso anjo está desnudo.