O insistente (publicado originalmente em 24/7/2012)
Em um trecho de ‘Para Roma, com Amor’ (estreou dia 29 de junho no Brasil), novo trabalho do quase octogenário Woody Allen, seu personagem dele, Jerry, produtor musical aposentado, teima com um italiano, pai do futuro marido de sua filha, sobre se apresentar nos palcos cantando ópera, já que o romano solta a voz perfeitamente no chuveiro. Repete argumentos, é chato, e isto faz com que os demais se revoltem contra Jerry. ‘Está bem. Assunto encerrado. Mas a voz é estupenda! Só quero dizer isso. Pronto. Nada mais falo.’ Uns segundos passam. ‘A voz deste senhor é magnífica mesmo. E chega dessa conversa realmente. Agora, de fato, encerro por aqui.’ É hilário. As feições de Allen são o que de melhor tem na película de quase duas horas (espécie de recorde do cineasta, cujos longas têm em média 95 minutos). A insistência de Jerry, de certa forma, reflete o que é Woody Allen na sétima arte. Sabemos como são seus roteiros, as caracterizações dos personagens, como se dão o começo e o desfecho das tramas. Mas e daí? A cada nova empreitada, o nova-iorquino se renova, por incrível que pareça. Estes sopros de vida fazem dele um ícone hipocondríaco, ou então o astro bem desconfiado.
‘Para Roma, com Amor’ se passa, claro, na cidade italiana. Compõe o tour de W. Allen pelos países europeus: já esteve em Barcelona, Paris, Londres e agora Roma. O script é baseado no clássico ‘Decamerão’, obra do séc. 15 que aborda dramas humanos, sem entrelaçamento entre si, envolvendo amor, paixão e traição. Aliás, o título da fita seria ‘Bop Decameron’, porém Allen acreditou que nós, o público, não saberíamos o significado. Então optou pelo simples e charmoso ‘Para Roma, com Amor’.
São quatro histórias distintas: a já citada do cantor de ópera do chuveiro; da amiga pirada e sexy que visita o casal de estudantes (com Jesse Eisenberg, de ‘A Rede Social’, Ellen Page, de ‘Juno’, e Alec Baldwin, de ‘Os Infiltrados’); tem ainda um funcionário humilde duma repartição que de uma hora para a outra se vê confundido com um superastro (crítica na medida dos reality shows, também dos paparazzi e jornalistas, com Roberto Benigni, de ‘A Vida é Bela’); e finalmente a de um casal puro que fica, cada um deles, envolvido em confusões amorosas, sexuais (com Penelope Cruz, de ‘Volver’).
Os atores menos conhecidos tornam-se referências. Há alguns ali de se lamber os beiços. Por falar nisto, mais um ponto a Allen. Ele revela atores na mesma medida em que diz suas frases sobre morte, medo, remédios. É incrível sua capacidade de captar talento pelo cheiro, pelo rosto, pelo tato. Dos consagrados, não há privilégios. Todos possuem igual importância no filme. Parece que W. Allen cronometra a participação deles, pois a existência de protagonistas é nula. E mesmo em cada trama paralela as cotas de estrelas são bem fatiadas. Reparem: Baldwin segura Page e Eisenberg; Benigni, Cruz e Allen podem se virar sozinhos. E se viram muito bem. Benigni, por exemplo, realiza o melhor trabalho desde ‘A Vida é Bela’, quando levou o Oscar de melhor ator justamente. Penelope está como de costume: boa, cumpridora de seu papel. O trio Baldwin-Page-Eisenberg é reto, não compromete. Somente faço reparo ao rapaz de ‘A Rede Social’. Fiquei com a impressão de que ele ainda estava com o criador do facebook na mente, sobretudo nas falas rápidas e o ar de sujeito superior. E é engraçado.
Ao compararmos ‘Para Roma, com Amor’ com ‘Meia-Noite em Paris’ (2011), o segundo tem vantagem, por ser mais elaborado, talvez. Entretanto, o primeiro é o mais leve, de comédia rasgada de elegância, e tem personagens próximos do espectador, sem as referências bibliográficas do longa do ano passado. Trata-se da água com açúcar, mas açúcar refinado, rebuscado, digamos, allienado.