A grande derrapagem (publicado originalmente em 12/6/2012)
Enquanto a programação do cinema continua apregoando a baixa categoria, recorro ao meu herói de fases, o pesadelo dos psicólogos, Woody Allen. ‘Trapaceiros’ (2000) foi a primeira produção do cineasta com a DreamWorks, empresa de Steven Spielberg com a qual Allen firmou acordo para rodar cinco longas. W. A. estava desgostoso com sua carreira e queria por nas telas ideias guardadas no seu baú, como contou numa entrevista feita para promover ‘Trapaceiros’. Eram roteiros um tanto simples, mais simplórios, comédias de subúrbio, sem forçar a inteligência. Esta fase da DreamWorks correspondeu, dizem os especialistas, ao pior momento da carreira do diretor de ‘Manhattan’ (1979).
É engraçado se dar precisamente neste período a linha descendente para Allen. Ele quis dar um tempo nas histórias pensantes, manias de perseguição e hipocondrias para ceder posto, no caso de ‘Trapaceiros’, a um script em que vale, sobretudo, a risada maliciosa e o termo ‘levar vantagem em tudo’, a famosa ‘Lei de Gérson’. Allen é Ray, vigarista compulsivo. Foi preso por dois anos e vive dos bicos que a vida lhe dá. É casado com Frenchy (Trace Ullman), dona de casa batalhadora e que põe o dinheiro na mesa. Fracasso após fracasso, Ray está com mais um plano infalível na cuca: assaltar um banco. Então, aluga a casa vizinha à agência e começa a cavar o túnel para chegar às notas verdinhas.
Junta-se a ele um grupo de amigos tão pirados como ele e Frenchy apoia o marido inventivo. Mas a confeitaria, fachada da casa, faz um sucesso incontrolável, a ponto de eles desistirem do banco e com a ajuda dum policial aumentarem a empresa. Novos ricos, Ray e Frenchy esbanjam, compram, investem, festejam etc. A mulher começa a ter aulas de etiqueta com David (Hugh Grant), professor interesseiro e atraente, e Frenchy, claro, se interessa por ele. Enquanto isso, Ray, paranoico por mais golpes, deseja mais um: roubar o colar de diamantes de uma velhinha, amiga da família. Conta agora com a ajuda de May (Elaine May), a prima de sua esposa, e muito atrapalhada física e mentalmente.
É importante destacar que W. Allen estava prestes a iniciar a trajetória europeia, passeando por Londres (‘Match Point’–05, e ‘Scoop: O Grande Furo’–06), Barcelona (‘Vicky Cristina Barcelona’ – 08), Paris (‘Meia Noite em Paris’ –2011) e Roma (‘Para Roma, com Amor’, que estreará ainda neste mês no Brasil). No meio tempo, filmaria em Nova Iorque, mas pisando em solos europeus o fraco ‘O Sonho de Cassandra’ (07), e os medianos ‘Tudo Pode Dar Certo’ (09) e ‘Você Vai Conhecer o Homem dos seus Sonhos’ (2010). No depoimento dos extras de ‘Trapaceiros’, todavia, Allen refuga quando é perguntado sobre filmar no Velho Continente. ‘É caro, custoso... Tenho de levar toda minha equipe e são muitas pessoas. Agora não está nos meus planos’, disse. A gravação é de 2000, cinco anos antes.
A fase DreamWorks foi a grande derrapagem da carreira do cineasta nova-iorquino. A partir da década de 1990, aliás, Allen imprimiu sem querer um declínio nas obras de sua autoria, voltando apenas em 2005 com o já citado ‘Match Point’. Em ‘Trapaceiros’ não podemos dizer que Tracey seja a musa do diretor. Havia rodado em 1994 com Allen ‘Tiros na Broadway’ e sua figura não representou a importância de Diane Keaton, Mia Farrow, Scarlet Johansson. O papel de Elaine May foi rabiscado para a própria atriz, na época com 68 anos. Foi o último trabalho da também diretora, produtora e roteirista, hoje octogenária. São dela os principais instantes de alegria e comédia do filme. Elaine tem em ‘Trapaceiros’ o ponto ideal do riso e a sequência em que Ray quer roubar o colar de dentro de um cofre é hilariante. Porém a obra é a derrapagem, não a andança em linha reta. Mas Allen pode errar.