O gato bebe leite, o rato come queijo... (publicado originalmente em 1/11/2011)
Ao estrear como diretor com o amargo e ferino 'Feliz Natal' (2008), Selton Mello arrancou muitos aplausos e considerações consagradoras da crítica. Tido como senhor de si e bastante preparado para este novo papel, o ator transformou-se em cineasta. Trabalhou com a história que quis, os atores que quis e fez o filme que quis. Teve a ousadia de resgatar do ostracismo a ex-musa Darlene Glória e Paulo Guarnieri e pôs ainda Lúcio Mauro em um dos melhores momentos da carreira –e ele tem mais de 60 anos de estrada.
Três anos mais tarde e temos a estreia de 'O Palhaço', nos cinemas desde sexta-feira passada, dia 28. De novo me deparei com o atrevimento do moço e também há pontos a destacar: os artistas tirados do 'buraco', como Jorge Loredo, Moacyr Franco e Ferrugem, do Balão Mágico. Além do trio, a ribalta conta com a estrela de Paulo José e Selton Mello, numa sintonia tão fina que me fez pensar em Buster Keaton e Charles Chaplin. Claro, exagero, porém a nostalgia se aplica igualmente. Fazer o simples é muito difícil.
Em 'O Palhaço', Mello nos prega uma peça. Ou nem tanto. Ao entrar na sala escura, imaginamos que veremos uma ode ao ator de cara pintada, nariz vermelho, tido como o mais triste dos tralhadores. 'Eu faço os outros rirem, mas quem me faz rir?', pergunta Benjamim (S. Mello) a Dona Zaira (Teuda Bara), a mulher necessitada de um novo sutiã. O que temos na telona vai muito além de puramente homenagear os palhaços. Estamos diante do nonsense, do absurdamente belo, o que de mais felliniano existe em cinema.
O diálogo entre Benjamim e Zaira é apenas um dos momentos lacrimejantes da trama. Quem, por exemplo, consegue segurar a água dos olhos com Guilhermina (Larissa Manoela), a garotinha cujo maior desejo é só subir no picadeiro e seguir os passos da mãe? A sequência final, aliás, é de se tirar o chapéu e possui um tom que o autor de 'A Doce Vida' (1960) assinaria embaixo. Ademais, 'O Palhaço' tem vários instantes esplêndidos. E a pouca duração do longa nos faz querer mais e é isso o grande trunfo desta obra.
Mello não apela. A finíssima ironia usada por ele tem recompensas enormes. Ele trata o tal cotidiano circense na maior crueza possível. Está tudo em seu devido lugar: a pobreza, o calor, a fome, a vontade do reconhecimento, a humildade e a alegria em, pelo menos por alguns minutos, fazer as pessoas darem um pouco de risada. Menos eles. Não passam de uns coitados. Em certa altura da fita é isto mesmo que o diretor quer que pensemos. Selton Mello se deu tão bem na função que consegue. E depois vira a trama.
Apontar qualidade nas participações especiais seria 'chover no molhado'. Isto se comprova com o prêmio conquistado por Moacyr Franco no Festival de Paulínia, como o melhor coadjuvante. Nos poucos minutos em que aparece, domina, com sua voz gutural e talento renovável. Assim é também com Tonico Pereira, Jorge Loredo (o Zé Bonitinho) como funcionário público amuado e gozador, Ferrugem e Danton Mello, irmão do realizador. Nepotismo? Claro que não. Tudo em 'O Palhaço' tem a sua hora e o seu lugar.
Tinha comigo que em 2011 era 'Tropa de Elite 2' e não se falava mais nisso. Errei. Fala-se sim, e muito bem. 'O Palhaço' é o melhor nacional do ano. É como diz Juca Bigode (Jackson Antunes, em mais uma entrada 'inesperada'), e depois repetido pelo Valdemar (Paulo José, único nas cenas) e Benjamin: 'O gato bebe leite, o rato come queijo, e eu faço isso porque é o que sei fazer.' Esta frase resume tudo, não?
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