Análise de uma Possessão

11/06/2011

A partir das interpretações que foram expostas no diálogo sobre Possessão no dia 03/06/2011, pretendo estender algumas considerações. Elencando também novas perspectivas sobre a obra.

Aos personagens, irei me referir apenas pelas funções que exercem e não pelos nomes. A fim de não personificar papéis que são próprias representações sociais apresentadas na obra sobre/para a sociedade.

O pano de fundo do filme é a Alemanha durante a Guerra Fria. Historicamente, esta época é marcada por conflitos. A exemplo de quem seria o detentor do maior poderio armamentista nuclear. E das novas tecnologias. Foi, sobretudo, considerada uma guerra ideológica. Confrontando-se dois sistemas econômicos. Para que se provasse ao mundo qual seria o mais viável ao seu desenvolvimento.

Um período de uma tensão vivida sobre fatos constantemente acontecendo, porém muitos, restritos apenas às inteligências dos governos. É neste ponto que inicia Possessão. Pouco, ou nada – se virmos de um modo abrangente – sabe-se sobre o trabalho do marido e pai.

O que se torna visível, é um homem que ocupou demasiado tempo apenas com seu emprego. Por conta disso, ocorreram problemas familiares. Mas, como o filme ratifica, ele é praticamente insubstituível na função que exerce ou representa. Prova é a insistência para que continue no serviço. Qual seria? Aqui começam as investidas ideológicas.

Ele se afasta do trabalho para dar atenção a outra parte da sua vida. A família. A partir de então, expõe-se a degradação que pode vir a passar – já que não é regra – a instituição familiar. Causada, neste caso, pela ausência de figuras que simbolizam o lar.

A mãe já cometera adultério. O filho, muitas vezes, é negligenciado pelas partes. Em outras ocasiões, ele é deixado em total abandono. Em meio a todo este caos, o marido pretende resgatar o tempo que foi perdido. Mas não há mais interesse de sua mulher. Aparentemente.

Ela decide ir embora. Afastando-se completamente dos votos que ambos fizeram no matrimônio. Inicia-se assim uma cena de uma atuação fantástica. Durante três semanas, o marido se comporta perfeitamente como um dependente químico em um estado de abstinência. Por dias não cuida de si próprio.

Ele se desleixa da aparência, debate-se, tem convulsões. Torna-se alguém extremamente fora da realidade. Pretendo colocar aqui a união e o amor dos dois como o próprio casamento religioso. E valendo-me da expressão “A religião é o ópio do povo”, proferida por Marx, o que se percebe? Que há justamente este afastamento do homem em relação a Deus. Em relação a sua fé. Utilizo a relação casamento religioso como o não-dito no filme.

O marido é transportado a um estado de descrença total das suas convicções. No que acreditava. Das promessas feitas ao altar. Na esposa. Na função que representa para ela. Pretende, a início, não mais assumir o papel de pai protetor, decidindo por apenas ser o provedor do seu filho.

O homem não vê mais Deus. Ele, para ele, torna-se um mal. Mas após um tempo, ele decide resgatar sua vida. Procura se reerguer. Agora, a partir de si próprio. Apenas com crença nele mesmo. Encontrando-se aqui, um modelo, ainda que não muito bem sucedido, do super-homem de Nietzsche.

O marido tenta resolver os problemas familiares que vivencia, cedendo às concessões de sua mulher. Busca novamente pelo amor dela. Enfrenta seu rival. “Deus é uma doença”, ele fala ao amante de sua esposa. E este responde que são nas doenças que as pessoas encontram Deus.

Logo, sem que tenha percebido, ele retoma para si o conflito que antes já havia abandonado. Pois à princípio abre mão da sua função como pai e como marido. Depois retorna à luta para recompor o modelo padrão familiar. A fé e o acaso são interpostas. Estes dois elementos: fé e o acaso – são questões ponderantes durante o filme.

Seria o amante o acaso que o pai precisava para buscar novamente a fé no seu próprio relacionamento com a esposa? Entretanto, a narrativa é desenvolvida de uma maneira a colocar de forma dicotômica que: ou se tem apenas fé ou se tem somente a convivência com o acaso. Ao meu ver, esta construção é proposital.

Os personagens são apresentados como pessoas que não possuem mais crenças. Na religião propriamente dita. Nota-se que são pessoas céticas. Já não conseguem enxergar a manifestação da fé. E aqui há um paradoxo interessante.

O próprio ceticismo deles é a manifestação encoberta da fé. Já que procuram por ela: seja na cena em que a mulher vai à igreja, e diante da imagem de Jesus não encontra o que procurava; ou no homem, que a todo momento, apesar de ser negado e renegado, busca trazer a esposa novamente para sua vida.

Traições e manifestações de agressividade de ambas as partes; a todo momento uma parte não querendo mais viver com a outra e ainda assim continuarem juntos. Como podemos significar estas passagens?

Demonstrações. Provas de quê? De perdão. Onde o amor supera o ódio. Seria também o que mais? O próprio título do filme.

Possessão expõe claramente que um pertence ao outro, apesar de tantos conflitos. Uma verdadeira batalha. Que dá um tom de ironia ao cenário em que vivem, já que a guerra que eles travam só não é uma coisa: fria.

As interpretações, muitas vezes exageradas, como foi colocado no dia da exibição do filme, e as cenas intensas de vermelho, representam a vivacidade e as emoções que estão contidas dentro dos personagens.

Assim como neste período, deveria estar a população alemã numa época em que muitas pessoas perderam totalmente o contato com suas famílias e outras pessoas que também amavam. Sem comunicação alguma. Onde, apesar de viverem o mesmo sentimento, não viviam mais no mesmo território. Dividido em dois.

E o muro, construído em Berlim, seria essa barreira entre os dois na vida conjugal. Ambos carregando crenças diferentes. Mas ao mesmo tempo querendo se unificar.

E como isto ocorre? É aqui que entra a figura do novo elemento. Muitos poderiam chamar de criatura ou monstro, mas utilizo a expressão novo elemento.

Ele é um processo de transformação kafkaniana ao inverso. Durante toda a obra ele provoca repulsa. Mas ao longo do seu desenvolvimento, ele se torna, de forma aparente, o arquétipo do marido que a personagem almejava, como já fora comentado por um dos presentes no dia da sessão.

Entretanto, quero pontuar, ao meu ver, que é apenas superficial. Durante a evolução do novo elemento, vários personagens foram sendo fagocitados por ele. Mas, cabe relevar que houve um que não foi englobado. O amante.

Este, era o símbolo da virilidade e da beleza que a mulher ansiava para completar seu novo marido. Para somar à lealdade da união e à parte sentimental que o antigo já nutria por ela. E que, no novo elemento, está nos dois detetives. Todas estas virtudes elencadas estão representadas nestes personagens citados.

Assim, vejo não haver sido concretizada de forma eficaz essa metamorfose. A “antropofagia” não realizou o elemento ideal. Pontuando aqui, também, a inversão de sentimentos e valores que a mulher fazia em relação ao novo em detrimento ao antigo elemento(marido).

Ela se comportava na presença deste último com repulsa e nojo. Como, supostamente, seria de se esperar ao se deparar com o novo elemento. Quanto a este, ela o tratava com toda a fidelidade e amor, a quem hipoteticamente, deveria ter com o marido. Reafirmado na fala deste que diz sentir que: “quando ela está lá (com o novo) ela sente vontade de estar aqui (com o antigo)”. E vice-versa.

A questão em si nesta análise não está na morfologia. Mas novamente na simbologia por trás de ambas as figuras. O marido, ao retornar, mesmo aberto aos constantes diálogos e sem um retorno por parte de sua mulher, torna-se um déspota diante dela.

Tentando impedir o direito dela de ir e vir. Agredindo-a fisicamente e psicologicamente. Ele a coloca em observação constante, quando manda espioná-la. O que se vê é o estado de desespero do personagem por trás de todas as suas ações. É explícito. Novamente Possessão.

Por mais paradoxal que seja, ele está tentando garantir o bem-estar da sua família. Não se vê nesta figura em nenhum momento um estado de indiferença, além do próprio fingimento inicial em que tenta se afastar de tudo.

Este símbolo do marido e pai, em uma outra leitura, é a representação do próprio Estado em relação aos seus cidadãos. Sendo estes colocados na figura da mulher e mãe.

A partir do momento que a população se rebela e busca novos elementos. Novos horizontes. O Estado atua, com a própria opressão, para conter estes manifestos. A fim de que possa manter o status quo. Mais de Possessão.

O filme reitera o estado possessivo entre os dois, quando no decorrer da narrativa, vai-se eliminando um a um os personagens que estão no caminho dos principais. Os detetives; o amante; a mãe deste; e a “tia” que estaria sempre pronta a ajudar o casal. E o elemento que chama a atenção nesta última é uma perna engessada. O que seria?

Coloco em uma nova leitura. É a representação de um sistema que não funciona mais. Está quebrado. Falido. E obviamente engessado.

Ou seja, por mais que tente auxiliar em algo, não produzirá mais resultados efetivos. Aqui nas duas esferas do filme. Tanto política quanto relacional.

Revelando que: Os dois poderiam encontrar soluções por eles mesmos, através de acordos tácitos. Ou então, continuariam vivendo em guerra. Exemplo da cena do sofá. Em que há um diálogo entre a esposa/mãe com o marido/pai sobre a fé e o acaso.

Foi exposta uma interpretação por um dos participantes no dia da exibição do filme, de maneira brilhante, que ambos os elementos (fé e acaso) estariam se confrontando dentro da personagem.

A fé e o acaso duelam dentro da mulher. E o acaso e a fé brigam pela mulher. E a fé dela perde e se perde. Reflexivo seria também colocar novamente esta questão: Mas fé e acaso ao invés de serem forças antagônicas, na verdade não se atrairiam?

Já que para haver adesão, não necessita haver fé? Não necessariamente religiosa, mas no sentido de crença em algo ou em alguém para se buscar algo ou alguém? Ou alguém em algo. Ou algo em alguém.

A esposa buscou o seu novo elemento marido. Já ele se depara no decorrer da narrativa com seu novo elemento esposa. Contudo, em vez de querer ou aceitar esta nova experiência, ele pretende continuar com suas antigas convicções. Com sua antiga parceira.

É válido ressaltar que já havia este novo elemento mulher. De onde ela surgira? Como ela fora criada? Por que o marido não a reconheceu como sendo sua própria idealização? Qual era o trabalho dele? Por que queriam tanto que ele continuasse? Não haveria sucessor para a função dele? Ele era o melhor no que fazia? Ou no que representava?

E ao Estado? Quais as suas reais atribuições? O que representa à sociedade? É o caos ou a civilização? A mãe do amante questiona o que é pior: “Roubar a mulher do próximo, maltratar uma criança ou matar?”. No contexto do filme, além dos personagens, quem mais faria isso?

Não seria a própria guerra? Possessão. Quem toma uma guerra para si se não o Estado? Quem toma posse dos civis para defender um território? Outras vezes o divide. Já outras toma o que de si é alheio. Enquanto mulheres ficam sem maridos e filhos sem pais.

Para sociedade, restam idealizações de tentar substituir algo ou alguém. Resgatar o que não se tem mais. Mesmo que de modo superficial. Buscando assim o eterno retorno já proferido por Nietzsche. Ou uma crença.

E onde está Deus? O que seria um cachorro que está para morrer em uma escada? Assim como o que é um homem morrendo nas escadas? Ele continua apenas com a fé ou apenas com o acaso?

Concluindo, estas são as considerações iniciais que pude extrair de Possessão. Agradeço aos que estavam presentes por tecerem suas interpretações no dia da exibição do filme. O que permitiu ampliar ainda mais minha visão sobre um todo.

Termino com a seguinte frase: “O nosso amigo ainda usa meias rosas?”, dita no início da obra.

E também com a pergunta: Se a figura do marido e pai afirma Deus como uma doença, então quais elementos simbólicos O representam nesta obra cinematográfica? Ou seja, onde estaria Deus em Possessão?

Ficha técnica de Possessão:

Diretor: Andrzej Zulawski

Elenco: Isabelle Adjani, Sam Neill, Heinz Bennent, Margit Carstensen.

Produção: Marie-Laure Reyre

Roteiro: Andrzej Zulawski, Frederic Tuten

Fotografia: Bruno Nuytten

Trilha Sonora: Andrzej Korzynski

Duração: 80 min.

Ano: 1981

País: Alemanha/ França

Gênero: Terror

Cor: Colorido

Distribuidora: Não definida

Classificação: 18 anos

Fonte:

http://cinema.cineclick.uol.com.br/filmes/ficha/nomefilme/possessao-1981/id/4991

Delano Almeida
Enviado por Delano Almeida em 28/08/2011
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