A música de dois humanos (publicado originalmente em 19/7/2011)
Logo após a cena final de 'Aurora' (1927), pensei: mas que privilégio. Posso parecer ingênuo ou o último romântico à primeira impressão, mas o comentário é inevitável. Sublinha as feições de meu rosto cada pedaço dessa façanha shakespeariana conduzida tão candidamente por Friedrich Wilhelm Murnau. Para esquentar esta conversa, ouso contar sobre a história, tão simples e simultaneamente tão densa. Não há nomes próprios. Temos o fazendeiro (George O'Brien), a sua esposa (a lenda Janet Gaynor) e a mulher da cidade (Margaret Livingston). Durante uma excursão dos urbanos a estação rural, a mulher enamora-se do homem e fica no vilarejo após o bonde ir embora. Numa noite de amor, ela pede ao amante que venda a fazenda e assassine a esposa por afogamento, falando após ter sido um trágico acidente. Ele concorda e parte rumo ao crime. Porém, na hora H, vendo a companheira pedindo clemência, o homem recua, total e despudoradamente arrependido. Ambos vão à cidade, onde o fazendeiro realiza os desejos da amada e lhe implora pelo seu perdão. Mais me permito esconder porque quem venerar o cinema verá esta obra de arte.
Tudo absolutamente é impecável em 'Aurora' (no original 'Sunrise: A Song of the Two Humans' ou 'A Música de Dois Humanos'). A começar por aí, a trilha sonora de Hugo Riesenfeld, que impõe à fita alma colorida e a vida, consequentemente, ainda que seja toda rodada em preto e branco. A singeleza e a pureza são características que parecem terem sido pregadas ao filme, sem exageros. Além disto, trata-se de um longa-metragem de vanguarda, pois usou muitos recursos que inspiraram diversas tramas nos anos seguintes. Há uma sequência na igreja, por exemplo, na qual vemos os raios de sol iluminando o setor do altar. Ali nada existe de luz, mas sim de pintura na parede destes clarões. Noutra, quando Murnau exibe o centro da cidade, pegou crianças e anões e os fez como transeuntes no setor afastado da câmera, a fim de o público ver pessoas de estatura normal caminhando ao longe, a perspectiva de campo. A distinção entre claro-escuro e a sobreposição de imagens (o efeito de Eugen Schüfftan, que empregou espelhos e colocou a imagem de atores em cenários em miniatura) também realçam bastante a relevância histórica do filme.
Para os diretores John Ford e François Truffaut, é 'o maior filme jamais produzido' e 'o mais belo filme de todos os tempos', respectivamente. Um cineasta português, João César Monteiro, 'Aurora', entre os dez longas de sua vida, ocupa todas as dez posições. E Martin Scorsese disse que não é um filme, mas um 'poema visual'. Essas definições de gente entendida da área mostram ser 'Aurora', para usar expressão barata, um divisor de águas no cinema mundial. Foi a primeira produção de Murnau em terras americanas depois de anos na Alemanha, comandando clássicos como 'Nosferatu' (1922). Ganhou o Oscar de melhor produção cinematográfica única e artística, prêmio nunca mais dado de novo pela Academia, e troféus de atriz para Gaynor e cinematografia, e a indicação a direção de arte. Aliás, este espaço é muito pouco para escrever sobre 'Aurora'. Apenas acerca da atuação de J. Gaynor levaria dezenas de linhas, tamanha é a sua superioridade e intimidade com o ofício. Seu jeito doce ganha o espectador no primeiro minuto em cena.
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