O Segredo Revelado – o mundo larsvontriano

Leonardo Lisbôa

I. Lars por ele mesmo

O cineasta com um livro infantil na mão lembra de sua infância. O livro “Coração de Ouro” conta a história de um menino pobre que é ajudado por uma menina de melhor situação que ele. O jargão do conto era “Tome, meu casaco, que eu me arranjarei. Tome meu coração, que eu arranjarei”.

“... Eu me arranjarei”, melancolicamente Trier também pinça de suas reminiscência que seu pai achava que tal história infantil era um simbolismo da falsidade. E por isto, em situações difíceis, ele, seu pai dizia com ironia “... Eu me arranjarei”.

Trier compara muitas de suas personagens, Selma, por exemplo, à menina deste clássico infantil.

Para tal papel ele busca a atriz Bjönk, cujo nome significa carisma. Para interpretar Selma era disto que ele precisava: talento e carisma.

A história se passa nos EUA, afinal é uma crítica à sociedade estadunidense*. Mas ele afirma com certa aversão: “Eu me recuso a ir lá”, neste país. Por isto, “Dançando no Escuro” foi filmado na Suécia. Ele pesquisou e achou que o cenário sueco escolhido assemelhava-se aos Estados Unidos da América.

Para que Selma despertasse comoção e compaixão ele cria a personagem cega e com um amor imensurável para com seu filho. Sempre deseja histórias puras e para isto, ele afirma, procura depurar suas personagens. Trier compara Selma à virgem Maria. Ele é anti-clichês, por isto busca também, em suas histórias, fantasiar sem perder o foco na realidade.

Lars vocifera:

“O que sei dos EUA me vem dos filmes americanos. É uma nação fraca, que tem de matar seus membros para preservar seu conceito de moral. Eu sou radicalmente contra a pena de morte que não consigo conceber como um castigo. Minha percepção do sistema judicial americano, mesmo sem ser perito e sem conhecê-lo profundamente é que ele é injusto, num país dito cristão”.

Como diretor, o cineasta afirma que quanto mais à vontade fica o ator, sem suas interferências, mais as técnicas do mesmo (o ator) fazem com que as personagens se ressaltem, brilhem. Ele gosta não só de dirigir, mas de filmar também. Diz que filmando ele se sente ator e expectador. O que há de contraditório nisto, como veremos?

Von trier diz que gosta, quer e pretende fazer filmes não de heróis, porém, de heroínas. Ele diz que dentro de si há uma mulher e gosta de companhias femininas. Mas ao escolher, enturma-se melhor com outros homens. “Sinto-me menos complexado quando dirijo homens. Eu sempre tenho mais dificuldade em dirigir mulheres. As atrizes me olham, às vezes, como se fossem minha mãe o que me constrange muito. Elas sabem fazer isto. Elas conseguem fazer isso. Embaraçar-me, digo. E elas não hesitam”. Declara o diretor e continua: “Eu sou um homem de poder. Mas meu objetivo é o poder ou outra coisa qualquer? É outra coisa, acho. O poder é a capacidade de agir. O lado positivo do poder é poder agir. O poder ganha força quando se tem, como eu, medo de não tê-lo o suficiente. Eu não gosto do poder em si, mas do fato de ele calar meu medo de não tê-lo”.

Lars, sobre os atores diz que acha que alguns adoram o exibicionismo. Entretanto, opina que a profissão de ator é humilhante e que “eu os detesto, mesmo assim. Nada pessoal, claro”. Afirma o diretor.

Durante as filmagens de “Dançando no Escuro”, com o filme para acabar Björk tem uma crise. Rasga a blusa de sua personagem e desaparece. Todos da equipe se preocupam, enquanto Lars Von Trier se enfurece. “Minha relação com Björk estava se tornando um casamento. Agora que ela sumiu, sinto sua falta”...

Mais tarde e mais calmo. Lars justifica a reação de sua atriz e a si mesmo:

“Se você deixa suas emoções tomarem conta do jogo, se essa for sua técnica essas coisas acontecem. Eu posso entender. É mesmo algo adorável, maravilhoso. Seria pior se conter e se deixar apanhar por situações impossíveis. É genial mandar tudo para o inferno e fugir. É totalmente adorável e muito sadio. Eu entendo. Tudo bem. É genial. Eu adoraria correr até a cidade mais próxima, fugir até ficar esgotado. Seria bem melhor do que guardar o sofrimento lá dentro. Imagine se toda equipe do filme pudesse berrar, quebrar alguma coisa e fugir”.

Com isto, seja lá o que for que tenha ocorrido especulamos: Reações típicas de mulheres em suas TPMs, quanto à atriz ou o cineasta é exigente demais – ele havia declarado que deixa os atores à vontade – , ou Lars, como já se disse, é um sofredor de transtorno de humor?

Como terminar o filme sem Björk, que sumiu ao rasgar a blusa da personagem?

A equipe se preocupa. É sugerido ao cineasta que ele use dublê. Máscaras retratando a atriz são confeccionadas. Lars recusa tal artifício . Fica pensativo e melancólico.

Lars que gosta do poder e tomar decisões práticas se vê impotente. A equipe tenta animá-lo.

Lars admira a atriz. Não imaginava que ela reagiria assim com a sua maneira de perfeição, de querer que tudo aconteça em seu tempo, que todos cumpram exatamente o que ele traçou e determinou. Sente-se traído e desabafa: “Mulheres me ameaçam, desde sempre”. É ele um misógeno? “Querem me encurralar. Apanhar-me em sua teia. Não conseguirão. Tenho também minha teia. Uma teia poderosa: o filme que estou fazendo”. Onipotentemente declara.

“Um Vallium equivale a algumas cervejas, exceto que é bem mais desagradável de engolir. Eu já tomei uns dez, desde o início das filmagens. Odeio financiar a indústria farmacêutica”.

Björk voltou, para a felicidade do diretor que anuncia “... a madame resolveu terminar o filme”, ironiza.

Ele disse que “Dançando no Escuro” foi um filme que lhe trouxe muito sofrimento.

O produto disto tudo foi que em Cannes a produção ganhou a Palma de ouro e Björk, como melhor atriz.

Mesmo assim Lars dizia que, depois desta experiência, se sentia ainda perdido, confuso.

II. Lars pelo comentarista

O ser humano é assim.

Cria códigos para serem decodificados.

Vivem segredos para serem revelados.

Inventam mistérios para a sua desmistificação.

Levantam lacunas para preencherem-nas como colunas.

Fogem de seus vazios.

Fabricam pedestais para ali, como parâmetros, necessitando de bússolas, olharem seus nortes para não perderem referências.

Reverenciam santos, para se sentirem menos demônios e mais dignos de asas.

Lars Von Trier não é exceção na humanidade, feita de reações químicas (hormônios e seus humores). Reações labotoriais, explosões internas (corpos humanos) e externas (sociais, econômicas, políticas – históricas).

Em torno desta figura pública, que se tornou o cineasta através de sua arte – questionando a ordem dos gêneros, de modelos políticos, familiares, sociais – as lendas se fazem.

Dizem os elementos mitificantes que ele se formou através de diretrizes traçadas pelos seus pais – especificamente sua mãe. Estes o proibiam de demonstrar emoções no seio familiar, onde também assunto que abordasse religião era proibido. Sua educação escolar foi feita segundo a liberdade que ele tinha de ir ou não à escola, de ler os livros que quisesse. Também outro fator que contribuiu para o seu psíquico, segundo a lenda que o fez ou faz, é o fato de tomar conhecimento que o homem que ele tinha como pai não o era na verdade. Era fruto de uma aventura sexual de sua mãe, que ao morrer lhe fez esta revelação.

Citamos Marc Bloc para melhor entendermos a humanidade e suas épocas enriquecendo assim nossa análise: “... assim como há indivíduos mitômanos, há épocas da mesma espécie” (p.132). Estaria a Era pós-moderna também tecendo suas redes de mito? Bloc vaticinou mais: “O que é certo é que a obediência a um código, um pouco cediço, de decoro literário, o respeito de uma psicologia estereotipada, a paixão do pitoresco, não estão prestes a perder o seu lugar na galeria dos fatores de mistificação” (p.135).

Verdades ou mentiras, fatos ou lendas, mito ou louco, seja como for é um corajoso por usar suas produções para se revelar e nos revelar a beleza de sua arte, que nos maravilha e nos choca fazendo nos depararmos conosco mesmos e com a humanidade no que todos têm de ordinários e de extraordinários.

Parabéns Lars Von Trier pela tua arte, pela tua coragem de tirar máscaras, por ser o que você é.

Parabéns ao Barbacine por permitir-me conhecer uma produção cinematográfica diferente dos velhos clichês (sobretudo estadunidenses) e por me colocar em frente a esta instigante celebridade!

Barbacena, 02/07/2011.

*Esta crítica ele faz através de seus filmes: “Dançando no Escuro”, “Dogville”, Manderlay e Whashingto. Este último até 2011 não tinha sido lançado no Brasil.

BIBLIOGRAFIA:

1. BLOCH,Marc - Introdução à História - Fórum da História - Publicações Europa-América-Portugal. 1ª Edição - 1997.

FILMOGRAFIA:

1.POTERSEN, Katia Torbert - Os 100 olhos de Lars Von Trier - Dinamarca, 2000.

Leonardo Lisbôa
Enviado por Leonardo Lisbôa em 07/07/2011
Código do texto: T3080984
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