Tudo em casa (publicado originalmente em 19/4/2011)
Sempre funciona. Quando começo a perceber a minguação dos filmes nos cinemas, com 'aquela' qualidade duvidável, o remédio ao qual recorro me salva quase instantaneamente. Santo Woody Allen. E foi assim esta semana. O melhor recai no fato de eu assistir nunca a uma repetição. Como estou somente começando a tatear os passos de Allen – vi menos da metade de sua filmografia – minhas surpresas são as mais milagrosas possíveis neste mundo recheado hoje de muitos pernas-de-pau da escrita de bons scripts.
A luz da vez foi 'Hannah e suas Irmãs' (1986). Evidentemente, os ingredientes allenianos estão lá, como o sarcasmo exacerbado, os diálogos afiados em destroçar alguém ou algum grupo e o humor negro encrespado nos personagens interpretados pelo diretor-produtor-roteirista-ator-jazzístico. Mas neste filme ele é meramente um dos seres problemáticos. O ponto nevrálgico está grampeado no trio de irmãs que dá título à trama. Hannah (Mia Farrow, ela de novo) é uma atriz insegura, casada por duas vezes e cheia de dúvidas existenciais. Lee (Barbara Hershey – então com 38 anos, deu vida recentemente à mãe neurótica de Natalie Portman em 'Cisne Negro', 2010, completamente desfigurada pelas plásticas; uma pena, pois em 1986 era um vulcão, no bom sentido) vive com seu professor 20 anos mais velho e é ex-alcoólatra, e dependente dele em tudo. Holly (Dianne Wiest – fez a mãe de Nicole Kidman no forte 'Reencontrando a Felicidade, 2010) é ex-viciada em cocaína e atriz frustrada, além de viver pedindo dinheiro para Hannah.
Aparecem as histórias entrelaçadas. Temos Elliot (Michael Caine), o segundo marido de Hannah, mas apaixonado pela cunhada Lee. Mickey (Allen), primeiro marido de Hannah e um diretor de televisão hipocondríaco e às vésperas de receber a notícia de um tumor no cérebro. Frederick (Max von Sydow, o exorcista do longa homônimo de 1973), o professor-amante de Lee arrogante por ser culto demais. Todos eles são banhados pelo roteiro de Allen. Primando por uma edição curiosa, em tópicos, o cineasta cita em 'Hannah e suas Irmãs' de tudo: os ensinamentos judaico-cristãos, passando pelas poesias de Edward Estlin Cummings, e chegando às vias da Aids, à época a 'notícia do século', já que descoberta no início dos anos 1980. Há sequências hilárias e as principais, óbvio, recaem nas cenas em que Allen está, em sua maioria monólogos, como a de quando Mickey tenta se tornar católico e leva para casa um crucifixo, bíblia, terço e o pacote de pão de forma e maionese. Porém, o centro da fita é a dificuldade em se adaptar a situações.
Holly é a mais torpe. 'Você sempre me põe para baixo', diz a Hannah a cada fracasso profissional dela Holly. E quando a personagem de Farrow se vê no buraco sentimental, a família periga desmoronar. Cabe à vida, sempre ela, aparar as arestas usando sua arma letal: o tempo. No fim, tudo termina em jazz.
Para quem quiser prestar atenção, há a participação de John Turturro como um escritor à beira de um ataque de nervos interpelando Mickey por um trabalho mal recebido. São poucos segundos. E o longa ganhou Oscars. Foram três: ator coadjuvante para Caine e atriz coadjuvante para Wiest e roteiro a Allen. Teve mais quatro indicações: filme, diretor, direção de arte e edição, esta última merecendo sair vencedor.
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