Na ilha do medo
(baseado no filme "Ilha do Medo"; título original "Shutter Island")
"O que seria pior, viver como um monstro ou morrer como um homem bom?" – ao pronunciar essa frase, sua fala final no filme, em tom sombrio e um tanto lacônico, o personagem interpretado de forma magistral pelo ator Leonardo DiCaprio parece ter chegado à conclusão de que finalmente tomara consciência de si, do que realmente se passara nos últimos dois anos, desde a trágica morte de seus filhos pelas mãos de sua amada, e desta, por ele mesmo, a pedido dela própria.
No entanto, fica para o espectador a dúvida quanto ao seu real estado mental e também quanto ao que parece ter sido sua decisão de se entregar à lobotomia, numa espécie de autopunição ou mesmo fuga de sua cruel realidade, marcada por um estado de permanente alucinação que impiedosamente o devora. Teria ele recobrado a consciência de si próprio e, por essa razão, decidido aceitar a "solução" radical da lobotomia em face da rejeição à sua verdade? Ou, de outro lado, estaria ele ainda imerso no estado de confusão mental que dirigiu suas ações do início até o quarto final do filme? Para o espectador isso não fica claro, isso fica no ar.
Pois bem, a ilha do medo é uma ilha de fato, mas é também uma metáfora: é a ilha interior do personagem Teddy Daniels. Com efeito, ele se vê isolado do mundo "real", aprisionado que está por um brutal estado de confusão mental, que o faz acreditar estar vivendo uma situação real que na verdade não passa de mera alucinação. Até que, diante da irrefutável contundência das afirmações e provas apresentadas pelos personagens coadjuvantes da trama (os psiquiatras que dele tratam), finalmente cai em si, compreendendo ou parecendo compreender que o que ele até então julgava como sendo real se passava apenas em sua mente perturbada, doente.
E essa ilha interior é também a ilha de tantos de nós, prisioneiros que estamos neste mundo que em muitos aspectos está muito distante do mundo que pintamos em cores vivas nos tempos idos da infância, quando tudo é sonho e pode se realizar. Imersos em nossas ilhas interiores, convivemos com nossos próprios medos e alucinações, e tantas vezes nos trancamos para o mundo exterior, até o ponto de aceitarmos nosso destino como sendo algo escrito, imutável, em relação ao que não ousamos interferir.
Para mim, tal postura é equivocada, pois não se pode aceitar passivamente aquilo que julgamos ser "nosso destino". Cada um de nós escreve o seu próprio destino, como também interfere, influi na construção dos destinos de outras pessoas, direta ou indiretamente ligadas a nós. Assim, transposta para nossas vidas "reais" a solução radical da lobotomia que se mostra no filme é também uma metáfora, vestida no traje camaleônico da "fuga da realidade" que sempre se posta diante de nós como sendo uma "solução" fácil, e por isso mesmo tentadora. A lobotomia seria o simples desligar do interruptor que mantém ativa nossa consciência para os fatos da vida real, já que, no caso, julgamos que nada poderíamos fazer para mudar nosso destino escrito e selado.
Diante da violência que aí está, fora e dentro de nossos lares, e de tantos outros graves problemas da nossa sociedade, das carências da educação e da saúde pública às severas deficiências da infraestrutura de nossas cidades, passando pelo lamentável baixo nível ético, moral e cultural da nossa classe política, se passivamente aceitarmos tudo isso como sendo o destino em relação ao qual não ousamos interferir, então será o fim.
Prefiro pensar que ao proferir sua última fala no filme e se levantar e caminhar ao encontro da equipe médica que o observa à meia distância, Teddy Daniels de fato tenha recobrado a consciência de si, mas que, logo ao dar os primeiros passos na direção dos médicos, se convença de que pode e vai enfrentar seus fantasmas interiores, desviando-se do caminho da edificação do farol (onde um bisturi o aguarda) e tomando a variante rumo ao "barco" que o conduzirá de volta ao "continente", onde a vida real o espera, ao invés de simplesmente "jogar a toalha" e se entregar ao bisturi que, de forma irreversível, mutilará para sempre sua consciência.