Brega e chique (publicado originalmente em 22/3/2011)
Quanto mais eu vejo filmes de Woody Allen, mais as suas histórias me conquistam por diferentes pontos. Recentemente assisti a ‘Poderosa Afrodite’ (1995). Como de costume, roteirizado e dirigido por ele. Poderia lançar ‘protagonizado pelo mesmo’, mas seria mentira. Ele coadjuva. Por bom motivo: Mira Sorvino. Ela demora a entrar em cena. Quando surge, nos primeiros segundos nos encantamos pela beleza libidinosa. Nos posteriores, levamos baita susto com a sua voz esganiçada. A atriz é Linda Ash, prostituta aspirante a estrela de cinema. Para tanto, treina as interpretações trabalhando em filmes pornográficos. Na trama, Linda é mãe do bebê adotado pelo cronista esportivo Lenny (W. Allen) e a artista plástica Amanda (Helena Bonham-Carter, sem aquele brilho permanente). E quando Max (Jimmy McQuaid) completa sete anos, o jornalista começa a investigar a identidade materna do filho. Ele descobre, então, a incrível Linda.
Do mesmo modo, trata-se de outro longa-metragem de Allen com diálogos afiadíssimos, piadas que só americanos sacam (algumas são mundiais) e a fotografia de Nova Iorque toda formosa. Também como sempre, o personagem do cineasta é um desconfiado permanente, o líder em escapulir de confusões e medalha de ouro em covardia, falta de atitude. E tudo isto impõe à película honras de ser dele. Mas aqui a sua musa muda de figura. Ao invés de Diane Keaton, Mia Farrow ou a própria Helena, e bem antes de Scarlett Johansson, Penélope Cruz e Carla Bruni chegarem, o diretor-ator testou Mira e o seu lucro foi dos melhores. À época de 25 a 26 anos, a atriz perambulava por trabalhos pequenos. ‘Quiz Show: A Verdade sobre os Bastidores’ (94) havia sido o maior sucesso, ela enfiada em um papel menor. O cinema ainda não a tinha notado. Allen a escalou a ‘Poderosa Afrodite’ e se arriscou. O filme, caso ela tremesse, resultaria em retumbante fracasso. Deu-se o contrário. Ganhou Oscar de coadjuvante, merecendo de atriz principal. Ela atualmente gira na mesma roda da maioria dos premiados pós-Academia. Nada mais presta.
No seu primeiro minuto em cena oferece-se fogosamente a um timidíssimo Lenny. Enquanto ele começa a lhe perguntar acerca das frustrações da vida, Linda conquista não somente ao jornalista, mas a todos. A metralhadora na boca a faz disparar muitas palavras. Somando-se à voz estridente, pensamos: ela tinha de ter este defeito e está perdoada. À medida que Linda revela o seu passado, a gente se comove. Aí vem esta dualidade: sentimos pena dela ou de Lenny, o desajeitado que não sabe o que faz com tamanho problema? Revela a Linda ser ela a mãe de Max ou fica tudo como está? Amanda nem desconfia sobre as intenções do marido. O casamento está em crise. Ela trai Lenny com o financiador de sua galeria de arte.
A parte mais cômica de ‘Poderosa Afrodite’ está na consciência do cronista. Allen transportou-a à Grécia, com os deuses atuando como se compusessem uma ala teatral do cérebro dele. Filmada na Sicília, contou com vários figurantes e a presença de F. Murray Abraham (o invejoso Salieri de ‘Amadeus’ – 84) como o comandante, e Olympia Dukakis (de ‘Feitiço da Lua’–1987) na pele de Jocasta (o seu filho Édipo se casa com ela sem saber a verdade). As coreografias reproduzem pensamentos de Lenny, em poemas.
Tudo na fita soa como algo meio brega, meio chique. Quer pista melhor? Coisas de Woody Allen.
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