Sabe a amizade? (texto-bônus ao Recanto das Letras)

É engraçado o caminho de como os filmes alternativos chegam ao sucesso mundial. Para ‘Mary & Max: Uma Amizade Diferente’ (2009), feito na Austrália, o lance se deu, claro, além de ser bastante bem feito e produzido, por se tratar de uma animação de cunho dramático e trágico e não um reles desenho de infantil sentimento, cheio de risadas. Se assim fosse, estaria ainda nos bolsos dos cangurus. Aliás, quando soube da fita, a referência foi precisamente esta: trata-se duma história muito triste, somente para adultos.

O enredo mostra Max Jerry Horovitz, judeu de 44 anos, morador de Nova Iorque, obeso (tem 113 quilos e 1.92 metro), ansioso, depressivo e solitário; e Mary Daisy Dinkle, garota australiana de oito anos, igualmente sozinha, moradora do seu país, cuja mãe é alcoólatra e ladra, o pai um trabalhador burocrático de fábrica. Por um acaso, ela lhe manda uma carta (estamos no ano de 1976) perguntando se os bebês da América vêm dos copos de cerveja, ‘como na Austrália’. A partir daí desenvolvem a amizade de 20 anos.

Tudo é esmerado em ‘Mary & Max’. Desde os mais ínfimos detalhes, como pés de cama ou todos os bonecos do desenho animado preferido de ambos, os Noblets, até as feições dos personagens – Mary e os inseparáveis óculos grossos e Max com a barriga sem solução (ele frequenta os Comilões Compulsivos Anônimos e um psiquiatra, citado inúmeras vezes por ele) – o cenário é o ponto marcante. Enquanto ele é o branco-e-preto em pessoa, com Nova Iorque acinzentada completamente, ela possui colorido artificial, demonstrando a sua tênue alegria, em partes, às vezes aos pedaços. Mary pena com os problemas da mãe.

Dirigido e roteirizado pelo australiano Adam Elliott – é o primeiro longa-metragem (fez seis curtas) – a trama se desenrola em passos largos. Adam Elliott foi muito feliz ao não derrapar na mesmice. Bolou e explorou instantes inesquecíveis de fotografia, como a cidade norte-americana vista sob os olhares dos arranha-céus, ou no trabalho de Mary entregando panfletos na chuva. É a pura emoção na condução tanto da direção como o script. A impressão que dá é que se esbarrarmos em determinado local, lágrimas rolam.

Identifiquei-me com Mary e Max em diversos momentos. Com ela ao sofrer discriminação escolar. O bulling não existia na década de 1970 e é posto na tela com humilhações constantes à garota. Com Max pela ansiedade e síndrome do pânico, misturado a senso de humor negro apurado, ao constante sentimento de cansaço e exaustão por ter de carregar o fardo da vida nas costas. Ambos têm características de paladar diferentes da minha, entretanto: Mary ama leite condensado na lata e ele não vive sem cachorro-quente de chocolate. Estas compulsões em comer é um dos ingredientes da depressão ativa e a dupla sofre disto sim.

Entre personagens secundários, destaco o vizinho de Mary, veterano de guerra. São impagáveis as cenas dele com medo de sair à rua e ser abatido pelos inimigos. A vontade em também superar traumas é outro quesito a favor do roteiro. E por causa desse emaranhado de peculiaridades, ‘Mary & Max’ é difícil de ser assistido. É quase todo narrado (texto é ótimo), filmado no sistema stop-motion (eu particularmente aprecio) e quase integralmente em preto-e-branco (é outra de minhas preferências). O que laça o público, contudo, é o conteúdo sentimental e fraterno. Nem o suprassumo dos homens frios ficará sem se arrepiar.

No original, a fita é dublada pelos atores Philip Seymor Hoffman, Tony Collette, Eric Bana, Renée Geyer e Barry Humphries. Outro destaque é a trilha sonora, sobretudo a música de abertura e ‘Será, Será’, clássica canção eternizada por Doris Day em ‘O Homem que Sabia Demais’ (1956), de Alfred Hitchcock.

E sabe a amizade, aquela senhora atualmente tão estragada e desvalorizada? Então, pode-se afirmar ser a grande protagonista desta película. ‘Mary & Max’ transpira os sentimentos inigualáveis de ternura, compaixão, carinho e afeição. Nos 20 anos de companheirismo eles jamais se falam pessoalmente. Sequer trocam olhares. Porém, Elliott dá o tom do que é o mais relevante: a recordação do apego e as lembranças entre a dupla. Não escreverei o desfecho, mas é recomendável você estar com um par de lenços nas mãos.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 14/01/2011
Código do texto: T2728611
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