O ensaio do mestre (publicado originalmente em 31/8/2010)

A maioria– senão todos –dos críticos de cinema, jornalistas e cinéfilos em geral têm em ótimo lugar o diretor Federico Fellini. Não é para menos. A contribuição à sétima arte é incontestável e inabalável. No ano 3000 falarão, e com veemência, ainda neste prodígio italiano. Podemos esquecer de ‘8 ½’ (1963), por exemplo? Claro que não. E de ‘A Doce Vida’ (1960)? Menos. Somam-se aí também ‘Amarcord’ (1973), ‘E la Nave Va’ (1983), ‘Satyricon’ (1969) e ‘Casanova’ (1976). Um mais esplêndido que o outro. Baba-se quando o filme é dele. Isto é um mérito, pois são raros os realizadores que podem ostentar no currículo só produções eternas. Alfred Hitchcock, Akira Kurosawa e Charles Chaplin são três neste rol. Fellini, cuja geração é a seguinte do trio, completa a lista. Hoje trago uma película um tanto desconhecida do italiano.

‘Ensaio de Orquestra’ é de 1978, parte final da vida do diretor. Nas derradeiras duas décadas de sua vida, Fellini tinha em mãos boas cartas a jogar. Eram homenagens travessas que iriam aos poucos surgir nas telas e a cada história nova, um novo Fellini era escancarado. A reverência à capital da bota veio com ‘Roma’ (1972). A ode ao romance disse presente com ‘Casanova’. ‘Amarcord’ apareceu embrulhado por imagens de infância do comandante (mesmo Fellini afirmando até sua morte que não se tratava de simples autobiografia). ‘E la Nave Va’ salpicou brilho no movimento surrealista. Por fim, ‘Ginger e Fred’ (1986) quis destacar Ginger Rogers e Fred Astaire. Com ‘Ensaio de Orquestra’, o tributo era à música. Podem-se contemplar estes longas como sinais de despedida que Federico Fellini emitia enquanto os rodava, calmo.

Aos 58 anos em 1978, o cineasta imprimiu a ‘Ensaio de Orquestra’ um ritmo bem seu. Inicia com a apresentação dos personagens, todos membros de uma companhia de sons. Cada um deles fala acerca de seu instrumento: a pianista (Elizabeth Labi), a mais charmosa, explica os amores de se teclar; a harpista (Clara Colosimo) fala de solidão e do bem que a harpa lhe faz; o violoncelista (Ferdinando Villela) elogia o teor forte de seu parceiro etc. Falta o maestro (Balduin Baas). Enquanto ele não chega, dá para debater a questão salários com o homem do sindicato (Cláudio Ciocca). ‘Qual a razão de trabalharmos horas extras sem receber a mais?’, indaga alguém. É o modo felliniano de se fazer contribuições. Discordar é o lema.

Com a câmera atenta aos instintos dos músicos, eis que adentra o batuteiro. Berrando e exigindo as vidas a cada nota, o regente sabe ser muito estúpido. Intervalo. É tempo ouvir o som de fora. O que será? Terremoto? Ladrões? A capela do século 13 na qual estão enterrados três papas e sete bispos (!) hoje é palco do ensaio pela boa acústica. Há velharia e recordações, relembradas pelo copista no início do filme.

Os instrumentistas estão tão preocupados em tocar que têm tempo para matar rato, pichar paredes e dar tiros ao alto, além de dois deles terem relações sexuais enquanto há uma briga generalizada. Porém, a deter a equipe é necessário um estrondo. E a música vence? Como todas histórias de Fellini, as perguntas se sobrepõem às respostas. O público fica em dúvida em alguns pontos, mas na certeza de que viu cultura.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 31/08/2010
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