Zelig! Zelig? Zelig... (publicado originalmente em 4/5/2010)
Sempre me surpreendo com Woody Allen. Sempre. É, além de ser um diretor de mão cheia, um autor de muitos naipes nas mangas. Vejamos o caso de 'Zelig' (1983). Modestamente, Allen montou uma reconstrução de época incrível para desnortear o público com o pseudodocumentário de um homem-camaleão. Sim, Leonard Zelig se transformava em qualquer personalidade. Exemplo: se visitava restaurantes gregos, saía do local com a caracterização de grego; se estivesse numa roda de conversa com homens gordos, imediatamente todo o seu corpo começava a inflar e ele se tornava obeso. Impressionante.
E mais letal ainda, para a comoção de nós, os espectadores, é a razão pela qual ele desenvolveu este problema: desde muito tempo ele quis ser aceito pelos demais. Detestava aparecer. Queria somente ser mais um no meio da multidão. Aspirava não ter opiniões, nem sequer divergir em qualquer assunto. Então, a alteração genética o fez se cambiar em diversas personalidades.
W. Allen usa a psiquiatria como pano de fundo neste longa-metragem. A personagem Eudora Fletcher, vivida pela atriz Mia Farrow (de 'Bebê de Rosemary' – 1968), é a responsável pelo tratamento para tentar curar Zelig. São mostradas cenas de papos de paciente com doutora. Tudo bem caseiro, amador.
É uma obra de arte legítima. A pessoa que por acaso desconhecer a fita ou o teor da linguagem dos filmes de Allen, ao se deparar com 'Zelig' achará mesmo aquilo um documentário muito bem elaborado sobre um homem que de fato viveu nos Estados Unidos nos anos 1920 e que carregava com ele a aberração de se aglutinar com outrem, pois tinha dentro de si uma falta de autoestima exorbitante. Indicado aos Oscars de melhor figurino e fotografia, o longa ficou marcado pela 'facilidade'. Isso mesmo.
No livro 'Conversas com Woody Allen', do jornalista Eric Lax, o cineasta explica que só o trabalho de pós-produção exigiu um tico a mais do pessoal. O restante, foi falar 'ação' e tudo rolava. As sequências dele e Mia nas consultas no quarto – alguns diálogos – foram bem improvisados.
Percebam a nobreza de Allen nesta frase, retirada do livro: 'Uma ideia brilhante que não consegui fazer foi começar a agir como a Mia, e em mim ela se via pela primeira vez e mudava de vida. Filmei, mas não ficou bom. Precisava de muita informação adicional para funcionar. Era uma visão rica, que não fui hábil o bastante a realizar. Então, me restringi à versão mais simples.' Ele quis dizer isto: 'o público teria muita dificuldade de entender o meu intelecto.' Deveras, 'Zelig' parte do pressuposto de um documentário simplório. Todavia, a fita é mais elaborada do que você pode pensar. Entender esta maravilha de película é homenagear um profissional legendário. Os efeitos especiais foram um recurso moderníssimo em 1983. Onze anos depois, 'Forrest Gump' o aperfeiçoaria, mas nem tanto assim. Zelig no comício de Hitler, na guerra, enfim, ele está em todas as partes. O outro título possível seria: 'O Onipresente'. Mas Woody Allen sabe muito bem o que faz. O título, inclusive.