Caixa de Medalhas
Caixa de Medalhas
Kathryn Bigelow realizou uma façanha e tanto no Oscar 2010. Conseguiu mais estatuetas do que o inimaginável, já que o imaginável seria uma só e olhe lá. Ganhou inclusive Melhor Filme e Melhor Direção. Um filme de guerra. Uma produção quase “chão de fábrica” se comparada com outras, não necessariamente cotadas para este Oscar mas relativas ao tema. Na verdade tanto faz. A Academia nunca escondeu sua predileção por produções opulentas e o Avatar de Cameron desde o natal já era anunciado como o provável arrebatador de estatuetas. Não foi. Seus 500 milhões de orçamento perderam feio – em termos de prêmios Oscar, se comparados com os modestos 11 milhões de “The Hurt Locker”.
A Inteligentzia estaria por trás desta premiação? Seria formidável pensar assim. “The Hurt Locker” tem um predicado insofismável – ele é um jogo de xadrez com a crua plasticidade da Jordânia, local em que foi rodado.
Pouco mais de uma década atrás a Academia também jogou os louros sobre a guerra.
Steven Spilberg faturou um colosso de estatuetas pela obra prima “O Resgate do Soldado Ryan”. Alguns anos depois, em entrevista por razões outras, ele diria que um filme cresce ao ser revisto.
O pai de Steven serviu na Birmânia e lhe contou muitas histórias sobre a guerra. “Meu pai não contava histórias de horror, contava histórias que despertavam interesse sobre a guerra”, disse Spilberg filho, noutra ocasião. Exatamente aí está o trunfo de Kathryn. Ela não conta uma história de horror, ela narra o funcionamento de um micro mecanismo agindo em Bagdá. Histórias de soldados, como os resgatadores de Ryan. Não se trata de comparar os trabalhos e sim as situações e as épocas. A obra de Kathryn e a do fenômeno Spilberg são vigorosas, cada uma a seu modo.
E seus protagonistas são soldados. No resgate de Ryan, o pelotão conduzido pelo capitão Tom Hanks é composto por Edward Burns, Barry Pepper, Adam Goldberg , Vin Diesel, Giovanni Ribisi, Jeremy Davies, Tom Sizemore e eles dão uma vida e um movimento astucioso ao desenrolar do novelo dignos da própria vida, isso porque, a intenção de Spilberg, era retratar uma geração que decidiu sacrificar a própria existência em nome de algo melhor que o totalitarismo germânico. Isso é fato. Assim, estamos lidando com um ser humano diferente. A rapaziada que está no Iraque a serviço, agora, teve em 2008 um filme de raro quilate sobre suas, digamos, inclinações, baseado em evento verídico ocorrido em 2004. O nome do filme, traduzido, é No Vale das Sombras, com Tommy Lee Jones num de seus melhores papéis. O evento de que trata o filme versa sobre o assassinato de um dos soldados, perpetrado pelas mãos de seus companheiros, por conta de um porre, quando já de volta à pátria. Tommy Lee, que interpreta um militar veterano, se mostra estarrecido, pois na sua concepção homens que servem juntos criam laços mais fortes que o próprio sangue. O desenrolar dos fatos mostrou que esta geração não pensa assim. Ou talvez o motivo esteja vinculado aquilo que os levou para a guerra: falta de opções na própria pátria. A Guerra como um negócio, como um meio de vida. Diferentes portanto, dos que se acotoveleram na Normandia, e foram abatidos como moscas na hora do desembarque.
Kathryn Bigelow abre seu filme falando sobre a adrenalina da guerra agindo no indivíduo e seus efeitos viciantes.
Quanto a este particular, não se pode escapar de Patton, controverso general americano da Segunda Guerra revivido por George C. Scott em filme homônimo, lançado em 1970 e dirigido por Franklin J. Schaffner. Patton reservava verdadeira paixão pela guerra, considerava-se um homem fora de seu tempo, odiava o século XX, citava César, os Cartagineses e Napoleão e acreditava ter estado em todas essas batalhas, arriscava uns versos e tinha de fato aquela aura que os historiadores terminam constatando ao cabo de suas pesquisas, sobre guerreiros em pleno olho do furacão e nada, absolutamente nada, acontece com eles. Patton era o ápice do que podia sonhar a rapaziada de Ryan – e estavam todos lá para combater o mal.
Patton, o personagem, que apesar de general não deixa de ser um soldado, ao olhar uma coluna de tanques deslizando por uma encosta da Sicília, mostrada através das lentes 150 do diretor de fotografia Fred J. Koenekamp, diz para o seu ordenança: não há empreendimento tão grandioso como a guerra. As lentes ajudaram, apenas dois filmes foram rodados com elas, diferentes das então usuais anamórficas: A Bíblia e Patton.
Cinema também é um empreendimento de arrojo. Franklin J. Schaffner que o diga. Ele era, unanimemente, considerado o “gentleman” dos diretores de cinema, jamais perdia a calma, vivia dizendo “take your time” (vá no seu ritmo) para seus subordinados e rodou o filme todo em 13 semanas. Detalhe: 72 locações para 72 páginas de roteiro, e o exército exibido no filme é literalmente o exército espanhol, já que o filme foi todo rodado na Espanha e esta “herdou” dos americanos, pela troca de bases aéreas em seu solo, uma infinidade de artefatos da Segunda Guerra tais como armamentos de mão os mais variados, além de tanques e caminhões. Nesses idos havia, inclusive, um homem no governo espanhol especialmente encarregado de tratar com os estúdios de Hollywood. Pelos acadêmicos da Califórnia, Patton não é um filme de guerra mas um filme de arte sobre a guerra. Impossível contestar. George C. Scott leu 13 biografias sobre o General George S. Patton Jr. e transmitiu tamanho espírito ao personagem que até hoje é referência em interpretação.
A meu ver, vale a mesma ótica para o trabalho de Ryan e o trio de soldados de Bigelow. Filmes de arte. Ocorre que o orçamento dela é modesto e como já se disse sua lente focou um micro organismo, três patrulhadores, dentre eles o desarmador de bombas Jeremy Renner e seus desafios, e, mesmo que em época diferente de Patton e Ryan, costumes e tecnologia idem, o que impera são seus motivos para estarem lá. Nesse ponto, questiona-se o soldado, já que seria um absurdo levantar qualquer questão sobre a guerra, um absurdo em si mesma, exceto a mostrada em filmes que se esforçam pelo retrato fiel do evento, e não mera carnificina. Isso porque, nesses retratos, aprende-se sobre o ser humano.
Patton falava com orgulho de seus comandados. Que tinham marchado 150 quilômetros em xis dias sob neve, sem dormir, sob fogo cruzado, comendo comida fria, etc. Os atores empenhados em retratar o pelotão de Tom Hanks, inclusive ele mesmo, passaram por um intenso laboratório a céu aberto sob a supervisão de um militar reformado. Vin Diesel diria que foi uma experiência inesquecível embora não tenha a pretensão de repeti-la jamais. Francis Ford Coppola foi o roteirista de Patton, e um dos produtores – o general McCarthy, fez questão que o roteirista tivesse a maior distância possível do universo US Army, então indagou para ele qual sua relação com esse universo. Coppola respondeu: toquei na fanfarra duas vezes antes de desertar.
Spilberg rodou seu primeiro filme aos 14 anos utilizando a filmadora do pai. Uma produção caseira intitulada “Scape from Nowhere”. Um filme de guerra. Seus amigos usavam montes de areia sobre uma tábua para simular explosões. Sua farsa do Soldado Ryan também é um jogo de xadrez plástico que vai fundo na polivalência do ser humano quando colocado numa situação dessas.
O grande mérito de Kathryn Bigelow foi também edificar um retrato, (sendo ela mesma uma artista plástica), do soldado hoje, destituído do idealismo de Ryan e Patton, destituído inclusive de uma guerra homem a homem, como fora travada mais de meio século atrás.
“Avançar sempre, recuar jamais”, esse era o mote de Patton, tido pelos nazistas como o melhor general dos USA, que quando tinha de discursar para soldados dizia: “escolhi esse púlpito para que todos vocês pudessem ver o grande filho da puta que eu sou”. Nesse trecho eles gargalhavam. Daí prosseguia: “você não vai fazer nada pela sua pátria se morrer por ela. Você só vai fazer alguma coisa pela sua pátria se você matar o outro FDP por ela”.
Quando o confronto se torna um mal necessário para sobrevivência e não uma carreira - e pode apostar que a humanidade já passou por isso mais de uma vez - urge um agente inspirador com a devida inflamação.
Filmes como esses nos dão senão alguma idéia, uma vaga idéia do significado das palavras de Emerson:
“A guerra educa os sentidos, estimula a vontade, aperfeiçoa a constituição física. Leva o homem a uma colisão tão próxima, que o homem é a medida do homem”.
“Caixa de medalhas” era o apelido dos tanques americanos na Segunda Guerra, devido a sua frágil compleição face aos blindados nazistas.
Poupando mortos e feridos, um gênero de ironia que só mesmo o cinema para retratar.