As três cores: azul (publicado originalmente em 21/1/2010)

Após uma tragédia pessoal, na qual morrem em um acidente de carro o seu marido e a filha, Julie, a única sobrevivente, entra em um estágio completamente depressivo. Ainda no hospital, tenta, mas depois desiste, cometer suicídio. É lá também que assiste pela televisão o velório de ambos – ele era um famoso compositor erudito. De volta a casa, é acometida das lembranças dos dois e então Julie decide recomeçar a vida. Não quer recordações, souvenires, mimos, presentes, nada. Aos poucos, seu coração também volta a ter clareza. Julie se vê às voltas com Olivier, o melhor amigo de seu falecido marido, Patrice. “Você me ama?”. “Sim.” “Então venha para cá agora.” Este simples diálogo faz a ex-modelo ter a sensação de que pode amar de novo? Quem sabe. Julie se tornou fria e praticamente desprovida de quaisquer sentimentos.

Entre 1993 e 1994, o diretor polonês Krzysztof Kieslowski realizou os seus derradeiros trabalhos no cinema. Talvez contasse com o pressentimento de que tinha pouco tempo de vida – ele morreria em 13 de março de 1996, aos 54 anos, de problemas cardíacos... Nestes dois anos, montou três filmes baseados nas cores da bandeira francesa: o azul, branco e vermelho, e em seus três princípios fundamentais: liberdade, fraternidade e igualdade. Assim, desta trilogia das cores, como ficou conhecida mundialmente, nasceram ‘A Liberdade é Azul’ (1993, tema da coluna de hoje), ‘A Fraternidade é Vermelha’ (1994) e ‘A Igualdade é Branca’ (1994). As três fitas envolvem praticamente o mesmo tema – algum trauma insuperável – com diferentes tipos de soluções. No longa-metragem de 1993, Julie tem que se livrar de uma grave depressão.

Kieslowski foi um diretor que manteve a sua carreira dividida entre trabalhos para a TV e o cinema, com mais ênfase à primeira. Na sétima arte, contudo, estas três obras ‘coloridas’ marcaram a trajetória de um personagem bastante conhecido na Europa, não tanto nas Américas... Responsável por documentários na Polônia onde mostrava a vida dos trabalhadores e soldados, ele começou a se sobressair com uma série de programas veiculados na TV daquele país sobre os dez mandamentos (inclusive dois deles viraram os filmes ‘Não Matarás’ e ‘Não Amarás’, ambos de 1988). Sua forma de narrar histórias muda nesta fase. A importância dada às conversas cai, e sobe a necessidade de impor na telona a imagem por si só, junto com as cores. A palavra se transforma em poesia nas mãos de Krzysztof Kieslowski. O silêncio aqui vale mais.

Em ‘A Liberdade á Azul’ o espectador tem de lidar com o novo cotidiano de Julie. Não é fácil. Os problemas dela não terminam com as mortes do marido e da filha. A mãe está internada numa clínica. “Eu tinha medo de ratos quando criança?”. Com frases enigmáticas – mas nem tanto – como esta, a película se desenvolve suave, sem o público fazer força. Os personagens secundários como Olivier (Benoít Régent) e mais a prostituta Lucille (Charlotte Very), têm os seus próprios questionamentos, e os despejam em Julie (Juliette Binoche, atuação esplêndida). Ela ainda precisa lidar com a encomenda da música de seu esposo, o que a fará descobrir fatos sobre Patrice. Tudo isto envolto na magia do diretor. E é preciso ver toda esta trilogia mais de uma vez porque há pequenos detalhes que só quem assiste a duas ou três vezes consegue notar. K. Kieslowski fechou a carreira com chave de diamante. Ou melhor, pode-se dizer com três chaves.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 21/01/2010
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