Estrela solitária (publicado originalmente em 12/11/2009)
Há poucos dias, em 18 de outubro, raros veículos de comunicação enfatizaram mais um aniversário de Manuel Francisco dos Santos, o nosso Garrincha. Faria 76 anos. Até por não ser número considerado redondo (seria se fosse 75 ou 80), a desculpa por não recordar as travessuras do extraordinário jogador de futebol pode sim ter força. Entretanto, a coluna de hoje será sobre ele. Isto porque terminei de ler não faz muito a biografia ‘Estrela Solitária’, escrita por Ruy Castro. Lançado em 1995, o livro sofreu duras lutas para poder sobreviver à família do Anjo das Pernas Tortas. Filhas dele impediram, na Justiça, a vendagem da obra por motivos que nem valem a pena serem explicados. Felizmente, agora todas estas páginas estão livres de quaisquer lapsos absurdos. A trajetória de Garrincha é deveras triste, depressiva, mas bem feliz.
O livro possui furos de reportagem além de diversas outras revelações já sabidas por uns, mas não pela maioria. Um exemplo do ineditismo de Ruy Castro é a afirmação de que jamais a seleção brasileira perdeu um jogo com Pelé e Garrincha em campo. E eles foram companheiros de amarelinha de 1958 a 66. Mais uma informação valiosa foi a desastrosa convocação do atleta botafoguense à Copa de 1966, sediada na Inglaterra. A então CBD (Confederação Brasileira de Desportos), chefiada por João Havelange, certa de que o Brasil enfiaria goela abaixo o tricampeonato, resolveu ‘homenagear’ quase todos os bicampeões convocando-os ao Mundial. Garrincha, aos 33 anos incompletos, estava apto a disputar uma partida assim como Romário está a atuar na Copa de 2010. Tratava-se, naquele período, de ex-jogador em atividade.
A lista de dados valiosos segue com as narrativas de como os jogadores do Botafogo precisavam às vezes levar Garrincha carregado ao estádio, onde daqui a meia hora ele entraria em campo. Isso porque o seu estado alcoólico estava bastante alterado. Este ponto era sabido, porém não com tantos pormenores. E ainda tem em ‘Estrela Solitária’ todo o lado irresponsável dele, agredindo fisicamente Elza Soares, o dia em que atropelou o próprio pai e a outra feita na qual, guiando seu carro, bateu num caminhão e matou a mãe de Elza. Aí vale a cada leitor julgar Garrincha, pois todos estes azares só foram gerados por causa da bebida. O leitor saberá também que o álcool entrou na vida dele na primeira idade. Garrincha tomava na mamadeira uma mistura costumeira de antigamente que levava alta dose de destilados e o fubá. Viciou-se.
Na opinião de muitos jornalistas e amantes do futebol que o viram nas quatro linhas, Garrincha era superado somente por Pelé em qualidade. Mas o paugrandense, que vestiu a camisa de Flamengo, Olaria, Corinthians etc., tinha transbordante a sua porção moleque. Escreveu Ruy Castro: “Enquanto tinha a bola nos pés, era o mais interessado no futebol. No instante em que o árbitro terminava o jogo, Garrincha era quem menos suportava falar dele.” Podia, na visão de outros comentaristas, duelar com Canhoteiro (José Ribamar de Oliveira, considerado o ‘Garrincha pelo lado esquerdo’ – 1932-1974).
O que descobri lendo ‘Estrela Solitária’ foi que o cidadão Manuel dos Santos era um falso ingênuo. Cobrava salários quando tinha de fazê-lo, porém quando o recebia esquecia-o debaixo de colchões ou em gavetas da sala. Foi irresponsável em várias acepções da palavra: no jogar futebol, no lidar com a vida em geral, no tratar com companheiros e amigos... Mas Garrincha é único e soberano. Isto ninguém lhe tasca.