Entrevista de Ruy Castro (publicada originalmente em 29/1/2009)
“Não tive medo de morrer, mas de atrasar meu livro", diz Castro
Entrevistei o jornalista e escritor Ruy Castro, um dos principais nomes da literatura nacional nos últimos 20 anos. Nas mãos dele passaram as histórias de Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda... São obras perpetuadas não somente pelo irrefutável valor cultural que possuem, mas também pelo estudo e dedicação de Ruy a estes personagens.
Na maioria das tantas entrevistas dadas por ele, os assuntos abordados são apenas quatro: música, e em especial a Bossa Nova (publicou um livro sobre em 1990), futebol, cinema e literatura. A sua própria biografia até hoje foi pouco explorada. Na conversa a seguir, porém, sai de cena o autor. No palco surge o cidadão Ruy Castro, ‘acidentalmente’ mineiro de Caratinga.
“Sou tão mineiro quanto Milton Nascimento é carioca”, disse em inúmeras entrevistas, referindo-se à origem do cantor, que todos pensam ser nascido no lado ‘leite’ da ex-república que governou o Brasil (Milton nasceu em S. Cristóvão, zona norte do Rio). Aqui Ruy fala sobre seus pais, os ídolos da infância, da doença que não o apavorou tanto quanto o medo de atrasar a entrega de um livro e, claro, de música, literatura, futebol, cinema.
Ele comentou ainda os projetos para 2009 e cutucou Fernando Morais, autor de “O Mago”, sobre a vida de Paulo Coelho. A seguir, a entrevista:
Sobre a mudança de repórter de jornal diário para escritor, quero saber a razão de optar por este caminho depois de 20 anos de profissão e se a adaptação ao novo estilo de escrita foi difícil.
Foi apenas natural. Nunca pensei ou esperei que acontecesse. Um editor, Luiz Schwarcz, ainda na editora Brasiliense, se aproximou de mim na Folha de São Paulo e nos tornamos amigos. Comecei a escrever orelhas e quartas-capas para ele e, de repente, tive idéias para os meus próprios livros. Quando saiu o “Chega de saudade” [em 1990, pela Companhia das Letras, então a nova editora criada por Schwarcz], já estava com “O anjo pornográfico” na agulha [seria lançado em 1992]. A partir daí, não pude mais parar. Não tive nenhuma dificuldade de adaptação. Ao contrário: achei muito melhor ter mais tempo e mais espaço para escrever.
Como foi a sua infância em Minas Gerais?
Jogava pelada e ia ao cinema todo dia, comprava todos os gibis que saíam e ouvia os discos da enorme discoteca de meus pais em 78 rotações: sambas, boleros, tangos, valsas vienenses, fox-trots, big bands. E, pelo menos três ou quatro vezes por ano, ir ao Rio de Janeiro para longas temporadas, a fim de visitar minhas tias e primas que moravam lá, no Flamengo, Lapa, Copacabana, Cascadura e Rocha Miranda. Metade das minhas lembranças de infância se passa nas ruas Paissandu, Barão do Flamengo, Catete, Cinelândia, Riachuelo, Avenida Rio Branco...
Quais tipos de pessoas eram seus pais?
Meu pai não era um grande amante de livros, mas fanático leitor de jornais. Era mineiro, mas foi para o Rio em 1929, aos 19 anos, e sempre morou na Lapa. Era boêmio e namorador, gostava de cantar e tocar violão. Em 1940, foi passear em Minas Gerais (creio que em Aymorés). Conheceu uma garota de 16 anos, casou-se com ela e a levou para o Rio. Ficaram lá até 1947, dirigindo uma pensão de almoços para a vizinhança da Lapa. Naquele ano, aceitou um convite de um parente para ir a uma cidade chamada Caratinga, que ele não conhecia, a fim de dirigir uma loja de artigos dentários, de material para dentistas. Isso foi em meados de 47. Nasci em fevereiro de 1948. Minha mãe era (e é) dona-de-casa, também fanática leitora (e colecionadora) de jornais.
Seu apreço pela leitura e o cinema vem desde garoto?
Desde que me entendo por gente. Aprendi a ler, escrever e escrever à máquina antes dos cinco anos. Com essa idade já lia as legendas dos filmes. Alguns dos primeiros de que me recordo são “Sansão e Dalila” [de 1949], de Cecil B. DeMille, “Mighty Joe Young” (uma espécie de pós –“King Kong”, também de 1949; foi refilmado em 1998) e seriados da Republic como “Perigos de Nyoka” [série de 15 episódios, de 1942] e “Os tambores de Fu Manchu” [de 1940].
Nos anos 1950 e 1960, quais autores você lia e que livros e filmes desta época ficaram na sua memória?
Lia muito Arthur Conan Doyle (tanto o Sherlock Holmes como a ficção histórica), Arsène Lupin [O Ladrão Mais Charmoso do Mundo], Tarzan (na coleção Terramarear) e todo o terror clássico. Filmes, todos: westerns com Randolph Scott, musicais da Metro e da Fox, “Mon oncle” [de 1958], de Jacques Tati, chanchadas [brasileiras] da Atlântida, comédias italianas com a gostosérrima Marisa Allasio etc. Era apaixonado por Doris Day (não a de “Confidências à meia-noite”, mas a dos primeiros musicais da Warner).
Em 2009, você completa 42 anos de profissão. Quais lições aprendidas nestas quatro décadas?
Que tive e tenho muita sorte. Nunca quis fazer outra coisa na vida do que trabalhar com as palavras. Nunca trabalhei em nada que não tivesse vontade de trabalhar.
Em 2008, no programa “Opinião Nacional” da TV Cultura, você disse estar desde 1988 sem consumir bebida alcoólica, pois teve problemas com o alcoolismo. É complicado interromper um vício como este? E como foi chegar à decisão de parar?
Bebi pesado durante 20 anos. Nos primeiros 15, não me atrapalhou. Nos últimos cinco, fiquei dependente e morreria se não parasse. Só consegui porque fui ajudado pela mulher com quem estava casado (a jornalista Alice Sampaio) e porque uma centelha de lucidez, talvez a última, me alertou para o fato de que viver era muito melhor. Alice me internou numa clínica em Cotia. Passei um mês lá. Saí em fevereiro de 1988, às vésperas de completar 40 anos. Nunca mais bebi. Os livros começaram a partir daí.
Heloísa Seixas, sua esposa, escreveu um livro sobre Ruy Castro, uma espécie de álbum de fotos. Como foi para você, acostumado a escrever biografias, se ver como protagonista em um livro praticamente desta categoria?
O livro se chama “Álbum de retratos”. Saiu pela querida e minúscula editora Folha Seca, aqui do Rio. Não é biografia, mas minifotobiografia afetiva, feita por alguém próximo. O livro pertence a uma coleção e alguns focalizados em outros volumes foram Turíbio Santos, Dona Ivone Lara, Ferreira Gullar etc. Era uma bela homenagem que não podia recusar. Mas, para não contrariar meus pontos de vista, decidi ficar de fora do processo. Minha única participação foi a de ceder todo o material fotográfico e me submeter a duas entrevistas com a Heloísa, mas até estas foram desnecessárias, porque ela já sabia de tudo...
Nelson Rodrigues foi a figura mais emblemática, contraditória e polêmica que você conheceu?
Não. Mas foi uma das mais.
Na produção de “Carmen”, você descobriu que tinha câncer e disse que escrever o livro o salvou da doença. Mesmo estando envolvido com o livro, teve medo de que algo pior acontecesse?
Foi brabo mesmo. Mas, curiosamente, nunca tive medo de morrer. Tive medo de atrasar o livro. Todo o tremendo tratamento enquanto eu escrevia “Carmen” está descrito no livro “Álbum de retratos”, já falado anteriormente.
Como foi o tratamento do câncer? Ele já foi totalmente curado?
O tratamento consistiu de radioterapia, quimioterapia, tudo pesado, e uma baita cirurgia. Estou completamente curado, mas continuo fazendo exames periódicos. Devo ser o sujeito mais examinado do Brasil.
Ao pesquisar acerca de Garrincha, sua surpresa maior, segundo você mesmo relatou, foi descobrir que o ex-jogador tinha descendência indígena. Na feitura de suas outras duas biografias desvendou algo sobre Carmen e Nelson do mesmo nível desta descoberta do Garrincha?
Sobre a Carmen, o fato de ela ter sido criada na Lapa dos 6 aos 16 anos. Muita coisa da história dela se explicou ali. Sobre o Nelson, o tremendo intelectualismo dele quando jovem, que ele abandonou no começo dos anos 1950.
Em uma coluna à Folha de São Paulo, você escreveu que a seleção brasileira de futebol está sem identidade com o povo, pois os bons valores jogam no estrangeiro. Em sua opinião, algum dia o time voltará a ter esta identidade? Teremos novamente ídolos como Didi, Nilton Santos, Bellini?
Tudo é possível no futebol, inclusive a seleção voltar a ser formada por jogadores da casa. Afinal, se eles só ficam bons depois que vão jogar lá fora, por que os clubes estrangeiros os contratam aqui? Mas não sou um grande torcedor da seleção. A última que me empolgou foi a da Copa do Mundo de 1982. Sou Flamengo. Isso me basta.
Tanto você como sua esposa também são tradutores, inclusive “Cuca Fundida”, de Woody Allen, você traduziu. Qual a sua avaliação sobre as traduções feitas pelos brasileiros, principalmente em relação à poesia?
Heloísa e eu não somos tradutores profissionais. Traduzimos livros de que gostamos muito ou que pretendemos apresentar para o leitor brasileiro. E me parece que o nível de tradução na poesia é melhor do que na prosa.
Você já tem em mente a próxima biografia que escreverá?
Não tenho mesmo. Este ano, pretendo fazer dois livros de imagens: um sobre a Carmen e outro sobre o Flamengo. É possível que saia também, pela Companhia das Letras, uma coletânea de artigos sobre literatura, a se chamar “O leitor apaixonado”, nos moldes do “Tempestade de ritmos” (sobre música popular) e “Um filme é para sempre” (sobre cinema). Todos editados pela Heloísa.
Qual a sua opinião sobre escrever biografias de pessoas vivas como Fernando Morais fez com Paulo Coelho?
Sempre achei que não podia dar certo. E agora parece que o Fernando Morais também acha.
O Brasil é um país que lê?
Espero que sim. Se não, para que escrever?