“Outro sonho...” (publicado originalmente em 9/7/2009)
Akira Kurosawa, ao contrário da maioria dos outros compatriotas japoneses, não era um senhor de baixa estatura. Envergava seu 1.84 metro com a altivez de um samurai veterano. Fazia filmes. Começara a profissão de diretor quando atingiu os 30 anos, em 1940. Como era apaixonado por cinema, angariava as notas de ienes para poder rodar as fitas por meio de comerciais de televisão. E não tinha vergonha disso. Ficou conhecido nos Estados Unidos em 1955, quando sua obra ‘Os Sete Samurais’ (1954) abriu cortinas aos estadunidenses acerca de produções orientais. Antes de Kurosawa, eram raríssimos cineastas de olhos puxados que haviam construído algo de bom na terra do Tio Sam. As realizações dele, Kurosawa, sempre pautadas pela reflexão. Até sua morte, em 1998 aos 88 anos, gostava mais de apalpar a mente do público com imagens densas e autoexplicativas a trabalhos mais um tanto requintados. Era bom em transmitir os valores do Japão ao resto do planeta. Conseguiu o feito, de forma lúdica, sobretudo em ‘Sonhos’ (1990).
São oito segmentos. No primeiro, um garoto desafia a mãe ao espiar a dança proibida das raposas na época de acasalamento delas. No segundo, outro menino persegue uma figura que ele pensou ser outra menina, mas não era. No próximo, um grupo de desbravadores sucumbe à forte nevasca, mas são salvos por um milagre. No quadro quatro, o capitão do exército japonês na Segunda Guerra Mundial surpreende-se ao se deparar com seus soldados mortos em combate no meio de um túnel. O quinto trata de um fã do pintor Van Gogh que se vê mergulhado nas telas do artista (ressalto aqui que Van Gogh é interpretado por Martin Scorsese) e tem um encontro com ele. O número seis mostra o Monte Fuji em erupção, enquanto, devido à falha humana, uma usina nuclear explode, espalhando no ar nuvens de radiação. O penúltimo é sobre o viajante que fica cara a cara com o demônio. Este lamenta ter sido um homem ganancioso. Como muitos, transformou a terra num lastimável depósito de resíduos venenosos. E no derradeiro, para mim o mais belo, jovem turista fala com um idoso acerca dos benefícios e malefícios das invenções do homem.
‘Sonhos’ detém uma das fotografias inesquecíveis do ecrã. Cores vivas e fortes permeiam o filme de Kurosawa com vitalidade e energia impressionantes. Isto pode ser visto principalmente quando surgem flores na tela. E são espécies de tudo quanto é tipo: azuis, vermelhas, amarelas, rosas, brancas, verdes... Há plantas de todos os gostos. O diretor abordou seus traumas e lembranças por meio de sequencias que nos obrigam a voltar nelas e rever aquele instante. Por exemplo, o contato entre Van Gogh e seu fã. Com o olhar apurado, Kurosawa nos transporta a uma linda paisagem, repleta de cores vibrantes. Porém, caso você prefira o diálogo dos diálogos, se atente para a última história. “Os inventos modernos fazem todos ficarem infelizes. O importante para se ter uma boa vida é ser puro e ter água limpa.” Esta frase é dita por aquele senhor que bate-papo com o jovem. Viram? São palavras tão simples em uma película espetacular. É precisamente esta frase que resume ‘Sonhos’. Mais do que reverenciá-lo, você deve senti-lo no coração.