Um filme digno de Rachmaninoff (publicado originalmente em 3/1/2009)

À toa não foi a indicação e posterior premiação a Geoffrey Rush por ‘Shine’ (1996). Scott Hicks, o diretor, levou à telona a vida de David Helfgott, exímio pianista australiano, hoje com 61 anos, com sérios problemas mentais. O longa-metragem, como a maioria das cinebiografias, começa em um determinado ponto, então recua ao passado, por meio de lembranças do protagonista. O flash-back é demasiadamente usado quando a fita exige contar detalhadamente a existência de alguém. Assim, para não cair na mesmice de iniciar a trama de maneira linear, montam-na nesta forma. Hicks fez o feijão-com-arroz muito bem. A película exibe Helfgott batendo na porta de um bar. Ele está aparentemente desnorteado. Lá, reconhecem-no e o levam para casa. A partir daí, ‘Shine’ conta a trajetória do artista, desde a infância, quando seu pai, o severíssimo Peter (Amin Mueller-Stahl, indicado também ao Oscar, como coadjuvante) ensinava o filho a toca piano, sobretudo impecavelmente obras do compositor, maestro e pianista russo Sergei Vasilievich Rachmaninoff, tido como o mais difícil de ser interpretado, por seu rítmo complexo, lendário e delicado.

A família Helfgott fugira das trevas da Segunda Guerra Mundial na década de 1940. Judeus, foram parar na Austrália. David nasceu em 17 de maio de 1947 em meio a um clima de insegurança e disciplina. O garoto (nesta fase feito pelo ator Alex Rafalowicz) de cara mostrou o faro para as teclas do piano. Peter logo o notou. Músico frustrado, o pai dedicou a vida a treinar o rebento. Na casa, apenas canções clássicas eram permitidas. Ao serem tocadas, o silêncio deveria prevalecer, pois a magia e beleza daqueles sons já bastavam. Mas a cada campeonato musical disputado por David vinham derrotas ou segundas colocações. A decepção na face do pai fazia David se adestrar mais. Com o esforço extremo, sua cabeça não demorou a fundir. A vontade de vencer se sobrepunha. David dava sinais de neurose. Adolescente (Noah Taylor o interpretou), foi estudar na Inglaterra. Ao retornar à terra natal, casou. Após o fim das bodas, foi internado em um hospício. Ficou ali durante dez anos e passou por um tratamento psiquiátrico. Descoberto por uma fã, saiu do hospital, passou a tocar num bar nos anos 80. Casou-se novamente. O sucesso finalmente veio.

‘Shine’ emociona. E esta comoção deve-se principalmente pela atuação de Rush. Na época com 45 anos, o ator somente havia feito pequenas participações em seriados de TV, filmes de pouca expressão até ser convidado a fazer David Helfgott. O estrondo causado por sua dedicação ao papel foi imediato. Rush se ‘contaminou’ pelos apelos do personagem. Não teve vergonha de se expor e brilhou na seqüência em que, depois da retomada da carreira, faz um show e é aplaudido de pé. As lágrimas derramadas são tão ou mais sinceras que as dele próprio. Hicks pouco teve a fazer quando Rush estava em cena. Percebe-se que o ator leva o drama ‘no chinelo’. O artista compôs seu Helfgott com argúcia: desde sua fala embaraçada e ultra-rápida, até o jeito de andar todo desastrado e capenga, passando inclusive pelo modo carinhoso que tratava quem admirava e gostava por afeição. Ele necessitava de dengo. Implorava alguém por qualquer milésimo de atenção, dedicação. Sabia do problema que tinha, mesmo assim destacou-se porque também sabia aonde queria chegar... E chegou... O estrelato não o vitimou. Ao contrário. Devolveu-o ao seu posto.

Na festa do Oscar de 1997, quando ‘Shine’ apareceu indicado a sete estatuetas (filme, diretor, ator, ator coadjuvante para Stahl, edição, trilha sonora e roteiro original), a platéia somente aguardava a vez do chamado dos listados para ator. Rush concorreu ladeado por Tom Cruise (‘Jerry Maguire’), Ralph Fiennes (‘O Paciente Inglês’), Woody Harrelson (‘O Povo Contra Larry Flynt’) e Billy Bob Thorton (‘Na Corda Bamba’). Nenhum deles possuía calibre suficiente. A. Stahl, outro merecedor do troféu, perdeu para Cuba Gooding Junior de ‘Jerry Maguire’. ‘O Paciente Inglês’ levou o de diretor (Anthony Minghella). ‘Shine’, melhor fita do que ‘O Paciente Inglês’, ficou, vejam, só com o Oscar para Geoffrey Rush. Bem merecido.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 21/09/2009
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