Com o pé esquerdo (publicado originalmente em 27/12/2008)
Nesta semana natalina, nada é mais engrandecedor do que a história verídica de superação, coragem e destemor. Christy Brown, filho de humilde família irlandesa, é o exemplo. O filme: ‘Meu Pé Esquerdo’ (1989). Brown nasceu em 5 de junho de 1932. O médico, ao dar a notícia ao pai, disse-lhe que, no parto, havia ocorrido um problema. O garoto tinha paralisia cerebral. Naquela época, uma doença desconhecida e tratada com desprezo. Quem a possuísse estaria condenado à vida vegetativa e, caso não agüentasse, a morte se encarregaria do resto. Brown, na fita vivido brilhantemente por Daniel Day-Lewis na fase adulta, sofre. Na infância fica relegado ao chão, perto da mesa de jantar. Não consegue falar, andar, se comunicar com os demais. Somente o seu pé esquerdo tem força. E é por meio dele que toda a biografia de Brown é escrita. Na adolescência, começa a desenhar. Chega a expor seus trabalhos. Sua carência o faz apaixonar-se pelas mulheres que passam por sua frente. Consequentemente, a rejeição o abala de forma lancinante.
Brown, de personalidade forte, na medida em que se formou adolescente e percebia o talento que os deuses lhe deram, tratou de instalar nele a blindagem necessária para fugir de preconceitos. Assim, iniciou na bebida. Ficou impertinente com os demais. Queria ser mais um e como tinha dificuldade em aceitar o destino, vingava-se nos copos cheios. A curadora da primeira exposição foi talvez a vítima número um do pintor. Brown não recebeu bem a notícia de que ela se casaria em breve. Como os carentes, enamorara-se da jovem facilmente. D.Lewis, esbanja categoria nestas atuações. O rosto bem enquadrado por Sheridan o auxilia. A fita estampa ao espectador a gama de fragilidades do deficiente. O tão ajeitado roteiro, somado à direção refinada, renderam, claro, frutos. Refiro-me à Academia de Artes Cinematográficas: indicada a cinco estatuetas (filme diretor, ator, atriz coadjuvante e roteiro adaptado), a película levou um par para a casa – a mãe (Brenda Fricker, de ‘Esqueceram de Mim 2’) e o filho (Daniel Day-Lewis). Bem merecido.
Ambos também arremataram os mesmos prêmios na cerimônia do Globo de Ouro. Era de se esperar isto numa temporada relativamente frágil ao ecrã. Quiçá Morgan Freeman pudesse estar à altura de Day-Lewis em ‘Conduzindo Miss Daisy’ (89). Mas, ao cotejar a dupla, o protagonista de ‘Meu Pé Esquerdo’ se sobressai sem discussão... Sobre as coadjuvantes, nenhuma fez frente à Brenda: Anjelica Huston, Julia Roberts (então uma novata de 21 anos, por ‘Flores de Aço’), Lena Olin e Dianne Wiest foram fichas perto da ‘mãe de Brown’. Jim Sheridan merecia mais sorte na categoria de melhor diretor? Oliver Stone venceu por ‘Nascido em 4 de Julho’ e Woody Allen compunha a lista por ‘Crimes e Pecados’. Quanto ao roteiro, o troféu para ‘Conduzindo Miss Daisy’ estabeleceu o chamado ‘aqui tem para todo o mundo’. No quesito filme, idem. A trama da velhinha vivida por Jessica Tandy fez bater mais os corações dos votantes. Qual vale mais: o drama da idosa ou o do deficiente? Escolha muito ingrata. Porém, não há empates no Oscar.
Sheridan, estreante no cinema, pegou o gancho na própria autobiografia de C. Brown, lançado anos antes (o protagonista morreu em 1981, aos 49 anos). O diretor se arranjou com profissionais qualificados. Lewis vinha do sucesso de ‘A Insustentável Leveza do Ser’ (88). Brenda era atriz de TV. Estava há quatro anos sem pisar nos sets, mas o Sheridan soube enxergar nela o talento necessário para dar vida à mãe de Brown. Principiante, o realizador se saiu bem. Captou pontos fortes de cada personagem e se encarregou de distribuir a cada um o requisito básico à boa performance diante das câmeras: a sinceridade ao público. Lewis, atestando o mínimo, domina a telona. E não poderia ser de outra forma, pois estudou os gestos dos paralíticos mentais. Durante a filmagem, ficou o quanto pôde na cadeira de rodas usada pelo personagem. Exemplo de dedicação que veio laurear o artista para sempre. “Atuação mediúnica”, dirão. “Profissional”, outros balbuciarão... Cada um a seu tempo. A meu ver, as duas coisas. União de fé e brilhantismo puros.