A melhor dupla (publicado originalmente em 18/12/2008)
Certas duplas fizeram bonito nas telonas, mas tornaram-se míticas devido a sua preciosidade e pela sua raridade. Charles Chaplin e Buster Keaton, dois gênios do cinema mudo dos anos 1910 e 1920, nunca haviam trabalhado juntos, por exemplo. Deveras eram rivais. Um despistava o outro. Recorriam ao ciúme doentio. Então, em 1952, já ambos sexagenários, deram as mãos em um momento contemplativo do ecrã. ‘Luzes da Ribalta’ emocionou do mesmo modo tanto os doces como também os salgados. Eternizaram-se ali, interpretando dois artistas em franca decadência que se apresentam apenas por amor a arte. Pouco? É, pode ser pouco. Entretanto, a história do cinema era escrita naquelas cenas. Não muito tempo depois disto a sétima arte deleitou-se com mais um presente destes de arrepiar a alma. Duas gerações de atores foram chamadas para concretizar o sonho do então jovem diretor Stanley Donen: realizar um musical na Cidade Luz, Paris. Daí deu-se o encontro de Audrey Hepburn, 27 anos, e Fred Astaire, 57. Magia garantida? Sim.
‘Cinderela em Paris’ (1957), antes propriamente de ser lançado, fincou estandarte no sucesso. Os espectadores mal podiam esperar para sentar nas poltronas das salas escuras e assistir àquele filme. Valeu a pena cada ansiedade. Donen, que cinco anos antes montou simplesmente ‘Cantando na Chuva’ (1952), não desviou de seu talento. Transformou Audrey numa simplória e desajeitada vendedora de livros e Fred num fotógrafo alucinado pelo melhor ângulo de suas modelos. Assim, Jo Stockton e Dicky Avery caíram na trama. Avery bate ponto na revista Quality Magazine, dirigida pela atabalhoada Maggie Prescott (Kay Thompson). Jo está mais preocupada com as teorias intelectuais de Emile Flostre (Michel Auclair), cujos livros ela sabe de cor e salteado. Quando o retratista acha na balconista o rosto perfeito para Quality, Jo só aceita ser clicada em Paris devido ao provável encontro entre ela e o escritor francês. Ainda assim, resiste. ‘Cinderela em Paris’ caminha nesta estrada. Músicas são entoadas, danças, executadas, e o público levita.
No meio da fita, Jo está em um bar ouvindo as lorotas de Flostre. Às tantas, Avery surge e pede o comparecimento da nova modelo ao hotel, pois há trabalho a fazer. A moça levanta-se e começa a dança. Sozinha, passeia no local e os balanços do corpo contagiam quem está perto. Audrey está sublime. O seu endeusamento é calcado em molejos sensuais, movimentados com aquela roupa totalmente negra. O rosto terno da atriz é sedutor sem deixar de ser infantil. E F. Astaire acompanha tudo aquilo imóvel – ele, sim, o Deus do balé cinematográfico. Seu Avery, naquela altura, estava completamente dominado por Jo. Donen dá ao casal um ar distinto, pois a diferença de idade entre ambos é gritante. Enquanto ela abunda traços e maneiras joviais, ele se mexe elegantemente, metido nas primeiras rugas da quase terceira fase da vida. É claro que Jo e Avery ficarão juntos ao final da película, mas o importante em ‘Cinderela em Paris’ é notar a parceria Audrey – Fred, que jamais se repetiu depois deste longa. Um autêntico diamante bem lapidado.
Apesar de não ter abocanhado os Oscars (foi indicado a quatro: fotografia, direção de arte, figurino e roteiro original), o filme é um marco. As seqüências em Paris são deslumbrantes, bem como a que o trio Jo, Avery e Maggie canta ‘Bonjour Paris’ e passa pela Torre Eiffel, cumprimentando turistas e franceses. São instantes magníficos como muitos documentados entre Chaplin e Keaton. Talvez possamos comparar Chaplin e Keaton / Audrey e Fred com Gene Kelly e Donald O’Connor no citado ‘Cantando na Chuva’. O cinema nos dá estas possibilidades de vermos mais de uma lenda atuando no mesmo roteiro. Entretanto, a de Audrey e Fred é imbatível. É difícil por na balança. Eleger a melhor dupla, esquecendo-se das demais, é pecado... Fico com o romance de Jo com Avery e a cena do desfecho de ‘Cinderela em Paris’, onde ela, vestida de noiva e sozinha no jardim, surpreende-se com o amado... Segundos maravilhosos de uma época que não volta mais, pois não nascerão nos próximos séculos outra Audrey Hepburn e outro Fred Astaire.