Efeméride rubricada (publicado originalmente em 11/12/2008)

Alguns filmes a gente assiste e percebe logo de cara que estamos diante de uma obra datada. E nada há de demérito nisto. Apenas simples constatação. ‘Doutor Fantástico’ (1964), de Stanley Kubrick, pode ser considerado um deles. Sim, retorno ao mesmo Kubrick de três colunas atrás. O diretor inglês foi perito em produzir magnitudes. Não constam em seu panteão deslizes. ‘Doutor Fantástico’ é somente um longa-metragem datado. Kubrick poderia ter tirado o corpo fora, mas preferiu não o fazer... A época da fita foi a das mais calamitosas da história da Guerra Fria. Estados Unidos e União Soviética cavalgavam rumo ao temido botão vermelho. Um clique e a hecatombe se aglomeraria no universo. O realizador, então, armou o roteiro. Convocou Peter Sellers para a missão. Um encargo duro, diga-se. A P. Sellers a incumbência de interpretar três papéis totalmente distintos. Era para ter o quarto personagem, mas o ator não suportou: um anticomunista general americano, um ex-nazista servidor dos EUA e o presidente norte-americano. Três...

A história é a mais banal quando se aborda a Guerra Fria. O general Jack Ripper (Sterling Hayden) se vê dominado pela paranóia e resolve atacar os soviéticos. A partir da enxurrada de parafusos, rolados da cabeça do militar, os comandantes dos EUA e da URSS tentam enlouquecidamente deter um avião. No aeroplano, há a bomba atômica destruidora de planetas. A demência é compartilhada por todos. Então, os personagens de Sellers entram em ação. O mais impagável é doutor Strangelove (o título original da fita), o ex-nazista, cadeirante, expert em guerras nucleares. Seu jeito arrastado de falar, rangendo os dentes, é o ponto mais hilário. Strangelove tem a cuca quente. Volta e meia se recorda do führer e berra ‘Heil Hitler’ a quem deseje confabular acerca do passado dele. Na verdade, o papel foi criado com a fim de parodiar os cientistas alemães do Terceiro Reich, como, por exemplo, Wernher von Braun, Herman Kahn, Guenter Wendt, Edward Teller e John von Neumann. Tempos em que citar a Alemanha fazia arrepiar as espinhas.

Tanto Merkin Muffey (presidente dos EUA– figura baseada em Adlai Stevenson, político derrotado duas vezes à presidência do país) quanto Lionel Mandrake (oficial britânico a serviço dos EUA), as duas outras encarnações de Sellers, ficam em segundo plano em relação a Strangelove. Claro, o filme é todo ao redor do compulsivo ex-nazista. Kubrick soube conduzir Sellers bem demais neste ponto. E coube ao ator dar ao roteiro a vida necessária. Meses antes de rodar ‘Doutor Fantástico’, aliás, Sellers trabalhou com o diretor em ‘Lolita’ (1962), adaptação do clássico livro do russo Vladimir Nabocov, e o britânico adorou o resultado. O intérprete, que morreu aos 54 anos de infarto, também ficaria conhecido na década de 1970 como o inspetor atrapalhado Jacques Clouseau, da série de longas da ‘Pantera Cor-de-Rosa’ (1963, 1975, 1976 e 1978). Em Sellers percebemos o quanto à obra de S. Kubrick está datada. Mestre em dramas com pitadas de humor negro, o ator ficou muito marcado como Jacques Clouseau e Clare Quilty (de ‘Lolita’).

Hoje o filme não empolgaria. Não é como a própria ‘Lolita’, ávida, vivaz atualmente. A Guerra Fria aos meninos do século 21, com raríssimas exceções, é o assunto apenas estudado em razão do vestibular. Aliás, como quase tudo. Adolescentes só querem farra. Falar em Cortina de Ferro é citar a eles abobrinhas requentadas. É pena que seja assim. O ‘Doutor Fantástico’, indicado a quatro Oscars (filme, diretor, ator e roteiro adaptado), está definhado. A estrondosa seqüência na qual o major Kong (Slim Pickens – o quarto papel que seria de Sellers), pilotando, com seu chapéu de caubói, o avião carregado com a bomba H, mais precisamente sentado sobre ela, jamais conteria a atenção do público jovem, por exemplo. Perguntariam: 1 –Qual é a da bomba? 2 –Isto faz parte dos desenhos do Pica-Pau, onde tudo explode e ninguém se fere? ‘Aquele’ artefato causou problemas ao mundo... Serviu para amedrontar muita gente. Kubrick rubricou o período com a sua perspicácia. Mas, mesmo assim, ‘Doutor Fantástico’ caiu nas redes de uma efeméride.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 20/09/2009
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