As senhoritas de Hartman (publicado originalmente em 20/11/2008)
Stanley Kubrick demorava a fazer filmes, mas quando fazia, sai de baixo! Depois do alude de ‘O Iluminado’ (1980), o diretor inglês hibernou em um hiato de praticamente seis anos. 1987 chegou e ele resolveu arregaçar suas mangas de novo. O projeto era adaptar o livro de Gustav Hasford, ‘Full Metal Jacket’ à tela. Tendo como parceiro no roteiro Michael Herr, Kubrick escreveu ‘Nascido Para Matar’ (1987), o melhor longa-metragem sobre a guerra do Vietnã já rodado na história do cinema. É bem verdade que a fita tem defeitos. Esgadanha os espectadores somente no primeiro terço da obra. Os dois terços seguintes são primorosos também, mas não a altura do outro. A excelência e a nobreza dos 40 minutos iniciais devem-se unicamente a um ator: Ronald Lee Ermey. Como Hartman, militar responsável pelo treinamento dos novatos no exército, L.Ermey brilha tanto ou mais quanto Malcolm McDowell, o protagonista de ‘Laranja Mecânica’ (1971). O sadismo usado por ele para impor regras reflete-se em dó dos aprendizes. “Vocês aqui são uns nadas. Valem menos do que qualquer porcaria das ruas. Inúteis!”, brada o sargento. À frente dele, olhares amedrontados, intimidados, acovardados.
O recruta Gomer Pyle (Vicent D’Onofrio) é quem mais paga pecados no quartel. Com alguns quilos a mais, pena nas mãos de Hartman. “Você me faz querer vomitar Pyle! Seus pais, estivessem eles te vendo, teriam se arrependido de terem te feito”, berra o homem bélico. D’Onofrio não gurniu apenas na pele do personagem. Na vida real, para poder encarnar Pyle, teve de engordar 31 quilos. O destino da figura na trama é trágico: Pyle transforma-se no soldado mais eficiente de Hartman como o melhor atirador da turma. Aos poucos, a psicopatia instala-se nele. No último dia de treinamento, já totalmente transtornado, o calouro vinga-se dos maus tratos do superior e o aniquila com um tiro na barriga. Na seqüência, suicida-se. Fim do ato um da fita. Descobertas as cortinas nos deparamos com o Vietnã e suas desolações. Lá estão os agora combatentes, os ex-inúteis do finado Hartman: Hilário (o ator Matthew Modine numa das primeiras participações em filmes), Eightball (Dorian Harewood), Animal (Adam Baldwin) etc. A trupe tem de enfrentar, além dos perigos reais, as prostitutas sedentas por dólares. Mal acostumados, eles às vezes refugam por medo ou deveras por forte americanismo.
A contratação de Ermey ao filme ocorreu inusitadamente. O ator era consultor do roteiro. Dava dicas sobre como treinar soldados no estilo dos fuzileiros navais. Foi demitido. Revoltado, gravou a demonstração de 15 minutos de como deveria agir um sargento com pulso forte. Kubrick viu e ficou boquiaberto. Decidiu chamá-lo de volta não ao cargo anterior, mas como ator. Nas filmagens, Ermey sofreu acidente grave. Dirigia um jipe de madrugada e capotou. Fraturou várias costelas. Então, em determinadas cenas, surge impossibilitado de mover um dos braços. Isto é imperceptível para aqueles que vêem ‘Nascido para Matar’ na primeira vez. É necessário bastante zelo. Mesmo assim, é difícil.
Como escrevi antes, era mais divertido ver ‘Nascido para Matar’ enquanto Ermey estava nele. Aliás, é impressionante como o filme se altera da água para o vinho quando termina o treinamento e começa a guerra. Sentimos falta de Hartman chamando seus pupilos de senhoritas. “As senhoritas já tomaram banho”, “As senhoritas lavaram os banheiros direito?”, “As senhoritas estão cansadas” são as coisas saídas da boca do sargento. Talvez fosse melhor Kubrick ter invertido a matemática e ficar 66% da película com as peripécias do tresloucado militar e os 34% restantes às aventuras no Vietnã. Emporisso, a qualidade da obra é sentida ao extremo. A rigidez e fanatismo do diretor estão fixados.