Marinheiro de última viagem (publicado originalmente em 23/10/2008)

Explicar o motivo de ‘A Dama de Shangai’ (1947) ter virado um fracasso retumbante enquanto esteve em cartaz é fácil: o casamento de Orson Welles e Rita Hayworth, iniciado em 1943, estava um tanto estremecido. Aquele 1948 a entrar os separaria para todo sempre. Welles, diretor e protagonista da trama, e Rita, a mocinha ambígua, não se entendiam. As filmagens se deram em 1946. O marido-comandante exigiu que a esposa-obediente cortasse seus cabelos à trama. E ainda tinha de pintá-los de loiro. Um tom aloirado muito forte, como se pode observar neste filme. Rita, naquela altura, tinha acabado de descer do pedestal de ‘Gilda’ (1946), onde, ao cantar ‘Put the blame on Mame’ deixou os rapazes de joelhos bambos. Agora, teria de passar tesoura pelos fios ruivos e pintar os que restassem de amarelo-ovo. Harry Cohn, chefe da Columbia Pictures, em cujos estúdios gravações eram feitas, ordenou que o lançamento de ‘A Dama de Shangai’ fosse adiado. Temia pela carreira da pobre Rita.

Ao ler todas estas confusões, você poderá analisar mal a fita. Ela não é ruim. Pelo contrário. A história mostrada por Welles é franca e competente no que deseja transmitir ao público. Possui cenas antológicas também. A do remate na sala de espelhos no parque de diversões é a mais emblemática. As imagens refletidas representam as múltiplas personalidades dos personagens. As diversas facetas divulgadas durante as quase duas horas de ‘A Dama de Shangai’ se afunilam ali. Vemos Arthur, Elsa e Michael (respectivamente, os atores Everett Sloane, Rita Hayworth e Orson Welles) confrontando-se com suas próprias figuras nas centenas de espelhos. O desvendamento dos assassinatos, o plano de fuga abortado, as mentiras ditas sem corar o rosto... Tudo cai naquele local. Welles leva o cinismo às últimas conseqüências quando Arthur começa a atirar nos vidros. A analogia é perfeita: as máscaras deles vão ao chão, aos cacos. Corroídos, a briga termina. Há vítimas fatais. É hora de o filme acabar.

Quando ele dá a largada, vemos Michael salvando Elsa de uns bandidos mequetrefes. Como se sucede nas tramas de amor, ela logo se apaixona por ele e pede para que o bravo herói viaje a bordo do navio de seu esposo, Arthur, um inválido. Marinheiro de vasta experiência, Michael hesita, recusa e depois concorda em ir (quem resistiria a Rita Hayworth loira e com aquele corpo de sereia?). Mas as águas do mar trazem maus fluídos. Existe um complô de morte sendo armado. O roteiro nos dá as pistas falsas (será mesmo?) e os espectadores tendem a caminhar pelo lado errado. Não sabem quem é o homicida. Arthur que quer se livrar da esposa e do amante? Elsa deseja liquidar Arthur para ficar com o amado? Ou aquela embromada do advogado em querer se matar, ou melhor, se fingir de morto para a família pode colar? Nestas tortas pistas estão as respostas. Quem se deu bem em ‘A Dama de Shangai’? Ninguém. A derradeira seqüência com O. Welles andando sozinho no meio da rua basta.

O ator e diretor ainda produziu e roteirizou a obra. Entretanto, o fracasso batia à porta. Muitos palpites sobre o frangalho não faltaram. Uns apontaram o cabelo claro de Rita como o detonador. O monopólio de Welles no filme, atado com o temperamento instável dele (deixava de lado projetos já com algumas coisas prontas, sem dar motivos) foi outro ponto. O original tinha 155 minutos. Pouco menos da metade teve de ser cortado, sob ordens de Cohn. Inclusive a cena final, a dos espelhos, teve sua facadinha. Os 87 restantes dão para o gasto, mesmo sabendo acerca dos problemas (mais) com a trilha sonora. Enfim, ‘A Dama de Shangai’ tornou-se conhecido mais por ser problemático (o filme) nos bastidores do que por ser fita protagonizada, dirigida, roteirizada e produzida pelo grande Welles.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 18/09/2009
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