O fenômeno (publicado originalmente em 2/10/2008)
O médico, político, industrial, escritor e espírita Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti foi um pioneiro na aplicação dos valores do espiritismo no Brasil. Conheceu a doutrina de Allan Kardec já depois de ‘idoso’. Arrebatou-se. A participação em reuniões tal como discursos acerca do assunto fez com que a então capital federal, o Rio de Janeiro, se assustasse com tamanha perseverança em tentar espalhar aos irmãos sua verdade. Além disto, seu lado médico aflorou arraigado neste apoio. Ajudou pobres com remédios, dinheiro, fé. Importava-se mais com filhos dos outros do que com seu próprio. E, como acontece com os bravos, semeou inimigos e descrença, parte dela vinda da família Bezerra de Menezes. Os irmãos dele o rejeitaram, por exemplo. O abolicionismo cravado nas idéias foi mais um ponto contra. Nascido em 29 de agosto de 1831, defendeu ferozmente a libertação dos escravos. A vida deste homem virou filme. Igualmente ao seu inspirador, transformou-se numa grande batalha.
Mas a fita não é pródiga a favor. Dirigida por Glauber Filho e Joe Pimentel, a única palma ao roteiro deve ser dada ao texto. Ponto final. Nada além das palavras se salva no naufrágio. Figurinos, interpretações, fotografia, direção... Achar o fundo do poço é entrar na vã, perigosa aventura suicida. Os atores usam bigodes e barbas postiças. Até aí seria normal. Entretanto, a produção fez questão de que se notasse a falsidade dos pêlos. É percebida ali a cola logo abaixo das narinas. A desproporção também merece destaque, como a do ator Caio Blat. Naquela face magra foi colocado um bigode que faria o mais português dos padeiros morrer de inveja. Nas atuações, a aspereza. A narração de Carlos Vereza (no papel título) é atrapalhada pela, talvez, pressa de terminar logo com aquilo. Vereza, outra vítima dos pêlos puídos, queria tanto fazer este filme que exagerou na calma. O público é levado a crer que estava cansado. Nem o espiritismo (o de Vereza) o fez trabalhar com a qualidade esperada.
Esqueci-me de ditar um louvor à obra, mas este não se atribui à dupla de diretores. Desde o dia 29 de agosto, estréia da película que coincidiu com o 177º aniversário do cine-biografado, o público só faz esguichar ladeira acima. Até hoje, 2 de outubro, 35 dias após a primeira exibição, o número de espectadores chega a quase 300 mil. Isso: 300 mil pessoas! Como balbuciar algo sobre isto, com os tantos defeitos que a fita acumula? ‘Bezerra de Menezes: O Diário de um Espírito’ tende acabar 2008 na lista dos três filmes brasileiros mais vistos! Uma resposta a esta excentricidade é a propaganda e as resenhas feitas acerca dele. C. Vereza deu diversas entrevistas por aí, uma delas ao programa de Jô Soares, na qual só faltou ajoelhar-se para explicar o fascínio pelo personagem. A parcela espírita do Brasil pode ter auxiliado neste recorde de bilheteria. Sim e não... Os 300 mil bilhetes vendidos batem qualquer argumento. Com tantos contras, os raros prós viraram o jogo? É teoria. Eu não confio nisto.
O famoso boca-a-boca contaminou a favor a obra de Glauber Filho e Pimentel. E praticamente a ausência de qualidade promete continuar não atrapalhando a bilheteria. Nem as atuações forçadas e impostadas, tampouco os pobres cenários e as roupas, e também não os famigerados fiapos postiços.
A vida de Bezerra de Menezes merecia superprodução nacional, com esmero e capricho. O que vi na telona me soou um despreparo dantesco dos diretores além da afobação. O fenômeno, de longe, não é o longa-metragem. Está no público: os 300 mil heróis (incluo-me aí). Deparamos-nos a uma vergonha, ou à falta dela. Era necessário ter larga proteção divina para divulgar um trabalho tão mal feito quanto este. Ao que parece, a equipe de “Bezerra de Menezes” deve estar muito bem blindada...