Quem são os “legítimos fortes” (publicado originalmente em 25/9/2008)
Se na semana passada iniciei o texto dissertando acerca dos 75 mil dólares usados por Stanley Kubrick na feitura de ‘A Morte Passou por Perto’ (1955), hoje começo não menos diferente, pois são raros os filmes cujo elenco base é formado por apenas dois atores do mesmo sexo. Esqueça se você pensou em ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ (2005). Nada disso. Meu alvo é uma obra brasileira e de mais qualidade. A dupla protagonista é João Miguel e Peter Ketnath. A fita, ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’ (2005). Este trabalho de estréia (até agora único) do diretor pernambucano Marcelo Gomes (que roteirizou ‘Madame Satã’, de 2002) recebeu no ano seguinte ao seu lançamento a indicação do Ministério da Cultura para concorrer à vaga no Oscar 2007 na categoria filme em língua estrangeira. Foi preterido pela Academia. Mas o público brasileiro e também o de outros países o amaram. E nada há de exagero nesta asseveração. Com trama um tanto criativa, o longa corresponde às expectativas.
O roteiro é, de tão simples, incrível. No meio do sertão nordestino, imaginem, caiu um alemão fugido da Segunda Guerra Mundial. Johann, com seu caminhão, pretende cruzar o Brasil para chegar a lugar algum, pois nota-se que está perdido. Na toada, Ranulpho, este sim autêntico sertanejo, quer abandonar sua terra a fim de tentar a sorte na então capital federal, o Rio de Janeiro. Em determinado ponto de uma estrada qualquer da caatinga, Johann e Ranulpho se encontram; o primeiro pedindo as informações sobre como atravessar a trilha e aterrizar nos povoados interioranos; o segundo dizendo não saber de nada, não senhor. O brasileiro pede carona ao europeu, que dá. Ao viajarem juntos pelas pequenas cidades do Brasil, nasce entre os dois (já disse: tirem da cabeça ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ de uma vez!) uma sincera amizade. Ah, sim. O alemão traz na caminhonete caixas e mais caixas do remédio inovador, divino e ‘milagroso’ naquele longínquo, remoto ano de 1942: a aspirina.
Gomes atingiu os espectadores na alma com ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’. Na entranha deste filme está toda a capacidade de levar ao próximo a esperança de que tanto ele como nós precisamos. Johann, além das malas de medicamentos que vende, carrega consigo um filmete com a propaganda da aspirina. Em cada local que percorre, exibe aos moradores daquela determinada aldeia o vídeo. O espanto deles é geral. Maravilham-se com os movimentos, a locução, o som musical etc. Mesmo que seja em preto-e-branco. E agora vem a notícia: estes mini-filmes foram mostrados realmente a gente do sertão brasileiro em 2005, a qual jamais tinha ido ao cinema. Eles aparecem na trama como se, de fato, estivessem em 1942, pois quase nada se alterou nos 63 anos de intervalo que separou a ficção de ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’ da verdadeira vida deles. O município onde esta mágica aconteceu se chama Picote. Além dele, a fita passou por Patos, Poncinhos e Cabaceiras, as três fixadas na Paraíba.
Cairia bem a esta produção a denominação de road movie? Talvez. Algo como o ‘Sem Destino’ (1969) do Nordeste? Pode ser... Mas tenho comigo que a herança deixada por ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’ se estende a outros tópicos. Trata-se, acreditem ou não, de um filme baseado em realidades. Ranulpho existiu e foi por meio do relato de sua viagem que o drama se montou. Aí se pensa: então quer dizer que alguém escapado dos trovões das bombas da Europa rodou nos interiores do Brasil? É, tende-se a crer na resposta positiva. E eu fico aqui imaginando: já pensaram quantas pessoas naquele ano puderam ver aquele comercial, como se fosse o cinema? E a alegria pura deles, nos sorrisos com os dentes ausentes? São eles, os “legítimos fortes”, como disse um dia o escritor Euclides da Cunha.