Uma (típica?) família (publicado originalmente em 11/9/2008)
Ao assistir a ‘Estamos Bem Mesmo Sem Você’ (2006) outros dois filmes logo me vieram à mente: ‘Kramer versus Kramer’ (1979) e ‘Ladrões de Bicicletas’ (1948). Explico os motivos. Semelhantemente ao roteiro de quase 30 anos, a história revela como uma família (no caso italiana; poderia ser de qualquer país) sobrevive quando do abandono da mãe. Renato Benetti (Kim Rossi Stuart, que também dirige a trama), o pai, tem de levar a situação para cuidar sozinho dos filhos: Tommaso (o competente ator-mirim Alessandro Morace), de 11 anos, e Violeta (Marta Nobili, igualmente conveniente), de 13. E tal e qual o script da década de 1970, a figura materna retorna a fim de arriscar se desculpar... Stefania (Barbora Bobulova, a bela atriz nascida na antiga Tchecoslováquia) volta ao lar doce lar e o azeda. Antes, escapara várias vezes em companhia de amantes. Desta vez, Renato, com o auxílio dos filhos, resolve, de novo, perdoá-la.
A recordação da película dos anos 40 veio por pretexto diferente. É devido à relação toma-lá-dá-cá entre pai e filho, do mesmo modo que os bravos personagens eternizados na tela por Lamberto Maggiorani e Enzo Staiola. Renato pressiona Tommaso a praticar natação. O garoto prefere futebol. “Você não é meu filho”, estampa um decepcionado Renato quando um desgostoso Tommaso desiste de disputar o campeonato de natação bem no meio da prova final. Depois, o afaga. O famoso morde-e-assopra resiste ao filme inteiro. Com Violeta ele é mais afável. A pré-adolescente, aliás, tem a sua libido em alta, pois não sossega em perseguir o pobre irmão com brincadeiras, digamos, indecentes. O trio, cada qual à sua maneira, tem a carência da mãe (os filhos) e da esposa (o marido). O cotidiano piora com as dívidas de Renato, que não se acerta em emprego algum. A veia siciliana aflora com os murros em portas e berros. E Stefania, a recém aparecida, dá no pé outra vez. Com mais um amante.
‘Estamos Bem Mesmo Sem Você’ deve ser visto por quem tem garganta desamarrada, porque nós insistirão em se formar nela. A tristeza toca a campainha de três em três minutos. O quarteto de roteiristas formado por Linda Ferri, o próprio Stuart, Francesco Giammusso e Federico Starnone foi muito feliz nos escritos. Ainda Stuart, na direção, soube compreender a dimensão deste ode ao amor, companheirismo e cumplicidade entre pai, mãe e filhos. O público, desde a primeira aparição da mãe Stefania, entende que ela tem problemas psiquiátricos. A cada cena, tememos se aprontará ou não. E o desamparo esperado vem... Tommaso se mostra como o mais infeliz. Desenvolve um laço fraterno com a família de Antonio, novo vizinho. Esta sim com linhagem ‘normal’. Todos vivem otimamente. Compara a sua com a do contíguo e escolhe a de Antonio. Renato vira fera com isto. Justo ele, o seu menininho, se bandeando aos ‘inimigos’ riquinhos... Mas ao lado de Antonio, as brigas não existem.
Tudo neste drama é notável. Desde os atores, passando pelos textos e interpretações fortes, as locações valem o destaque à parte. Os espectadores podem verificar bairros de classe baixa da Itália como se fossem os vizinhos dos Benetti quanto Tommaso sobe no topo do prédio em que mora para ‘espiar’ a cidade. “O que há aí”, pergunta Antonio, puro em travessuras com aventuras. “Nada”, diz o amigo, apenas espreitando os carros que passam logo abaixo dele, a 40 metros. O mundo sabe viver?
Possuir diversas qualidades na mesma obra é algo muito raro, considero. Bom roteiro somado a excelentes profissionais e particulares cenários são características difíceis de se juntar num trabalho só. ‘Estamos Bem Mesmo Sem Você’, incrivelmente, detém estas alegorias todas. É impressionante.