Xeque-mate (publicado originalmente em 28/8/2008)
Jamais havia assistido a um filme de Ingmar Bergman. Pecado meu, confesso... Nos quase 113 anos de cinema, o diretor sueco foi, indubitavelmente, dos mais talentosos e engenhosos do meio. E, semana passada, comecei a me redimir. Vi ‘O Sétimo Selo’ (1956), que, com certeza, está registrada no panteão de obras-primas dele, como ‘Morangos Silvestres’, lançado no ano seguinte. Roger Ebert, famoso crítico de cinema dos EUA, definiu assim a fita no livro ‘A Magia do Cinema’: “Trata-se de um filme determinado, a respeito do bem e do mal e com a mesma singeleza e fé do seu herói.” Não poderia ter tido momento mais feliz nesta declaração. Em ‘O Sétimo Selo’ podemos ter a noção do quanto Deus é ou não importante às pessoas quando o mundo gira em torno do caos total. O cavaleiro Antonius Block (Max von Sydow, de ‘O Exorcista’ – 1973) tem esta imprecisão de confiança divina, pois ao voltar das lutas da Cruzada da Fé, na Idade Média, encontra a terra natal devastada pela peste.
Ele indaga o Superior. Porque ele continua vivo enquanto tantos do teu lado morrem? Porque Deus finge surdez aos apelos por reles melhoras em seu povo? O silêncio do céu apavora Block. Está vulnerável. E este ponto fraco logo encontra abrigo. A Morte – ela mesma, em pessoa (interpretada perspicazmente pelo ator Bengt Ekerot), o encontra para seduzi-lo com uma proposta: a hora de levá-lo está chegando. Brioso, Block oferece-lhe a contraproposta: jogar xadrez. Se o cavaleiro perder, a Morte atuará conforme o destino, aplicando-lhe a pena máxima. Caso contrário, o soldado seguirá em paz o caminho indicado pelo Todo Poderoso. Mas vencer o senhor de preto é impossível e Block só quer o jogo para ganhar tempo e, desta maneira, achar respostas plausíveis às questões que envolvem a fé na vida, ou quem sabe, na morte. Ladeado por Jöns (Gunnar Björnstrand), a romaria é iniciada.
O longa-metragem é difícil àqueles acostumados com as mastigações atuais. ‘O Sétimo Selo’ mostra o cinema europeu no seu apogeu, com interpretações líquidas e certas. Bergman, junto com Fellini, Godard, Truffaut, Antonioni, DeSica etc, fizeram um cinema diferente. Talvez nem tanto. O que o pensamento vale mais que qualquer texto. Experimente ‘Acossado’ (1960), por exemplo. São diálogos raros e rápidos, nos quais a ação está acima dos holofotes. Ou então ‘Ladrões de Bicicletas’ (1948), este quiçá dos mais tristes retratos do mundo no pós-guerra. São roteiros cujo mote é explicar sem tanto falar. Os rostos devem prevalecer. Destarte, não é qualquer um que agüenta, atualmente, as películas deste tipo. ‘O Sétimo Selo’ vinga neste quadro. Max Sydow está impecável. A reprodução da Suécia dos séculos 11 e 12 também é irrepreensível. Bergman sabia o que estava fazendo. Ali era sua praia. Cada passo da fita tem o seu toque – e eles são percebidos, como xeques-mate sucessivos.
Ekerot participa da maioria dos xeques-mate. Sombrio, estarrecedor e compenetrado no papel da Morte, ele é quem ‘dirige’ a trama nas suas aparições. A principal delas, em um confessionário da igreja, quando Block lhe revela todas as suas inquirições. Quando o cavaleiro se surpreende ao vê-la, afasta-se, assustado, e as averiguações sobre Deus pioram, devido à ausência Dele. Enfim, ‘O Sétimo Selo’ é indispensável por vários aspectos. Por Bergman, Sydow, pelo tema ácido, os cenários, o texto enxuto e cálido, e, sobretudo, seu final esperançoso. A derradeira seqüência do cortejo liderado pela Morte, com Block, Jöns e os comparsas é contrastada pela família do artista de circo. Com a esposa e o filho recém nascido, ele observa o séqüito de longe. Bergman nos ensina mais uma vez. Ao mesmo tempo em que uns morrem, pois não existe o caminho diferente, outros conseguem renascer, vívido.