A profetisa (publicado originalmente em 14/8/2008)
Marjane Satrapi nasceu nos minutos finais de 1969 no Irã. Criança, tinha sonhos. Mas ilusões têm preços. Aos dez anos, a pequena Marjane se viu diante de uma alteração nos seus modos de vida. O aiatolá Khomeini encampou no país a Revolução Islâmica. Naquele instante e pelos muitos anos a seguir, a nação, antes uma monarquia guiada por Mohammad Reza, ficou sob o regime da república populista teocrática islâmica. Para a garota, a mudança mais significativa seria o uso do véu no rosto. Rebelde, roqueira e insurgente, a pré-adolescente começa uma batalha de vida. Mandada pelos pais a outros lugares, entre eles a França, Marjane padece dos piores males. Passa fome, aprende a fumar, se envolve com pessoas tortas etc. Adulta, torna-se cineasta. Aos 37 anos, resolve escrever a própria biografia. Mas não lança livro. Lança desenho, e em preto-e-branco. Com pouco mais de uma hora e meia de duração, ‘Persépolis’ (2007) afagou uns, sublevou outros, deixou muitas pessoas em dúvida.
A menina sonhava em ser uma profetisa, salvar o planeta. A mulher quer somente alertar acerca dos perigos da ditadura religiosa. As intenções são iguais, mas em tamanhos diferentes. Quando suas obrigações ficam maçantes, Marjane escapa. Veste jaquetas com nomes de bandas de rock dos EUA, procura andar o maior tempo possível sem os véus, influencia as amigas a aderirem ao seu particular movimento. Os relacionamentos com parceiros são desastres seguidos de desastres... Casa sem amor, por exemplo. Abandona o marido quase cinco anos mais tarde. O pesado cotidiano é fortalecido com as mortes dos amigos e parentes, ocasionadas pela Revolução Islâmica, o que faz o volume da raiva dela triplicar. À medida que o ódio sobe, a situação de Marjane se torna insustentável em seu país. É por isso que os pais a transferem à França. No Velho Continente, arruma emprego como romancista gráfica. Na década de 90, lança livros como ilustradora infanto-juvenil. O nome da obra: Persépolis.
O nome Persépolis é curioso. Assim que a produção estreou, muitos se perguntavam o motivo de Marjane ter escolhido a alcunha para as revistas em quadrinhos (estas serviriam de sustentação ao filme). O local era o atual Irã. Foi a capital religiosa dos Aqueménidas, dominante do Oriente Médio. Antigamente, foi a capital do império Persa. Mais tarde, Alexandre, o Grande, a destruiu por volta do ano 300 a.C.. Desde 1979, Persépolis é patrimônio da humanidade da Unesco. Nos desenhos da fita, percebe-se a preocupação de Marjane em cuidar dos detalhes, com bastante esmero. Traços, linhas, o colorido (70% de ‘Persépolis’ é em preto-e-branco – ainda assim, rico em qualidade), tudo, enfim, é cuidadosamente preparado para que a audiência alcance os toques de humor, tristeza, solidariedade, amizade e traição. Olhares parados, sorrisos maliciosos e travessos, as feições abertas ou fechadas... Os desenhistas fizeram de ‘Persépolis’ um fruto capaz de ‘salvar o mundo’, como sonhava Marjane.
A França, onde o desenho foi lançado, cometeu, a meu ver, enorme erro em relação ao Oscar deste ano. Indicou somente o cartum como o representante. Os especialistas franceses esqueceram-se de ‘Piaf: Um Hino ao Amor’ (2007). Daí, o resultado não poderia ser diferente: jogada à categoria de filme de animação, ‘Persépolis’ perdeu, também em minha opinião, injustamente para ‘Ratatouille’ (2007). Orçado em US$ 7,3 milhões, a história da Revolução Islâmica em quadrinhos rendeu muito mais. Expôs primeiro a pirralha Marjane, a atarantada. No segundo plano, a adolescente Marjane, de atitudes impensadas, mas ideais seguros. E no terceiro e último quadro, a mulher Marjane, já dona de seu nariz, impávida e colossal. Neste trio de personalidades que se juntam, ‘Persépolis’ se glorifica.