Não quero mais voar (publicado originalmente em 7/8/2008)

O objetivo deste espaço é indicar aos leitores filmes que valham a pena. Mostrar a vocês como é formidável saber que aquela radiante fábula marcou época na sétima arte. Sem derrelição no ato de sentar-se na poltrona e contemplar a obra. Isto é notório em ‘Asas do Desejo’ (1987). Com certeza, é dos longas-metragens mais poéticos e inspiradores da história dos ecrãs. O diretor Wim Wenders, do famoso documentário musical ‘Buena Vista Social Club’ (1999), mostra aos espectadores dois anjos incumbidos de bisbilhotar os pensamentos dos europeus logo após o fim da Segunda Guerra. Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) aparecem na tela observando seus pupilos. Sentados no alto de um edifício ou consolando alguém com problemas incuráveis, a dupla de arcanjos tem muito trabalho a fazer. Silenciosamente, as câmeras perpassam pelas abstrações de cada aflito. Sabemos quais são os seus tormentos por meio das vozes deles mesmos. E às vezes Damiel e Cassiel não podem interferir.

Trata-se de puramente pertencer ou não àquele mundo – o dos humanos – cujos sentimentos, de apurar o gosto do café quente, acabar com o frio esfregando as mãos ou ter a dor de uma trombada, formam a pessoa em si. Quem diz isto é Peter Falk, interpretando ele próprio na trama. Personagens de ‘Asas do Desejo’ o chamam, nas cenas, de Columbo, papel de extremo sucesso de Falk na série de televisão dos anos 70 na qual dava vida ao espalhafatoso detetive. Falk, segundo Wenders, seria um ex-anjo (se é que seja possível) que nota a presença de Damiel à sua volta. “Já passei por isto e sei o que você sente. Quero ser seu amigo. Aperte minha mão”, diz ele, olhando para o nado, pois não vê o enviado celestial. E Damiel lhe estende a mão. Nenhum dos dois pode sentir a força do cumprimento (um encarnou e o outro ainda tem asas), o que faz a seqüência ser tocante. Cassiel é compenetrado e investiga as depressões da população. Conforta-a. Tem ‘vocação’ para anjo, ao contrário de Damiel.

À parte deles, ‘Asas do Desejo’ provoca o público com figuras menores, sem nome. O velhinho que, condenado à morte pela doença, procura as razões da vida; o suicida, rameiras e Marion, a moça do circo (Solveig Dommartin). Caberá à trapezista mudar o rumo de Damiel, quando este, por acaso, a nota no picadeiro. O roteiro de Wenders e Peter Handke flui sem desarranjos. A maioria do tempo tem elucubrações. Ouvimo-las somente. Os diálogos se dão nos olhares. As sobrancelhas se movem com determinado cuidado. O par de anjos se reúne esporadicamente a fim de passarem o relatório do que se ocupam. Precisamente numa destas conversas o personagem de Ganz se convence. Quer ir de volta ao campo terreno. Sente falta dos mínimos detalhes do cotidiano. Está apaixonado por Marion. Segue-a pelos lugares. Chega a ser voyeur. Estende o limite do certo e errado. “Porque, então, tenho de continuar aqui?”, indaga-se. O ‘não querer mais voar’ fica sério. E ele se torna mortal, como nós.

É importante deslumbrar-se com as belas sacadas de Wenders. Como os anjos não sentem todo o nosso sofrimento, e nem tendem a compreendê-los, mas apenas suavizar a dor, eles enxergam em preto-e-branco. Digamos que 70% da fita está nestas condições. As pessoas, em cores. O diretor não faz os humanos pensarem em voz alta. Transformá-los-ia em zumbis, bestas-vivas que deixariam seu drama pequeno. Não. Fortalece-os e eles divagam como a gente, sem ruídos, quietos, pacíficos. 60% de ‘Asas do Desejo’ é assim, com aforismos só narrados. As expressões dos rostos valem mais. Uma beleza de obra de arte. A refilmagem estadunidense, com Nicolas Cage e Meg Ryan protagonizando (‘Cidade dos Anjos’, de 98), é bem pífia perto da alemã. Poucas películas atingem tamanha grandeza.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 15/09/2009
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