A quimera do melense (publicado originalmente em 31/7/2008)
Melo, cidadezinha uruguaia atualmente com 51 mil habitantes, viveu dias de euforia em 1988. Em 8 de maio daquele ano, João Paulo II, o Papa Peregrino, passou por lá a fim de rezar a missa. Sua população aguardou esta data com a ansiedade de um pobre muito faminto. E este superevento fez os estreantes diretores e roteiristas César Charlone e Enrique Fernández realizarem o prodigioso longa-metragem ‘O Banheiro do Papa’ (2007). Não precisaram de muito. Tornaram sua obra um prêmio ao público. As câmeras fazem bem seu trabalho mostrando o município, que faz fronteira com o Brasil. Vemos as casas carentes, as deficiências escancaradas e os moradores improdutivos. Um deles, Beto (o ótimo César Troncoso), muambeiro de mão cheia, vive exatamente do dinheiro do contrabando. A esposa, Carmen (Virginia Méndez, também arrasando), lava roupa para fora e contribui no lar. Silvia (Virginia Ruiz, contagiada com o talento dos dois), a única filha do casal, quer ser locutora de rádio.
Pouco tempo antes de o pontífice pisar em solo melense, Beto, que não arranjava seus trabalhos devido a uma confusão provocada pelo excesso de bebida, tem a idéia de edificar o tal banheiro. Os milhares de turistas, pensou ele, teriam de se aliviar em algum local e o toalete seria a mão na roda. O dinheiro da construção Beto pediu a Meleyo (Nelson Lence), policial responsável por fiscalizar todos os ilegais que traziam produtos sem os impostos. Ele, Meleyo, contrariando o ofício, malandramente encomenda mercadorias ao biscate. É dado o pontapé inicial na erguida do sanitário. Beto compra os tijolos, vaso, canos etc. ‘Treina’ com a esposa e filha como atender os ‘clientes’ (é a seqüência mais engraçada da trama – e uma das tantas jocosas da história do cinema). Tudo pronto. Porém, o destino age contra Beto. Um contratempo o faz chegar quase atrasado após o término da oração papal. Silvia o observa na TV implorando aos outros que usem o banheiro. Ela derrama as lágrimas de dó do pai.
‘O Banheiro do Papa’ foi baseado em fatos reais. E a trágica (aos moradores) passagem de João Paulo II esteve transposta às telonas com fidelidade. Na época, os milhares de visitantes esperados na cidade de Melo não vieram. Ao todo, aproximadamente oito mil compareceram e ouviram a ladainha do padre – a esmagadora maioria era da própria Melo (assessores do Papa + jornalistas credenciados = quase mil pessoas). Assim, os pães com lingüiça, as tortas, as bandeirinhas, souvenires, camisetas e o pretenso empreendimento de Beto ficaram a ver navios. Ao ver na TV o repórter pedindo a volta de João Paulo II à terra ‘prometida’, o personagem de César se revolta, gritando palavrões ao aparelho.
Se você deseja apreciar o produto limpo, desprovido de cenas escatológicas maquinadas pelos efeitos especiais dos estadunidenses, em ‘O Banheiro do Papa’ está a resposta certa. Gente indigente, em busca do pão de cada dia, aparece ali, vaticinando felicidades, precavendo-se contra inimizades e as falcatruas cotidianas de patrões espertalhões. As rodas da bicicleta de Beto que percorrem o chão de terra de Melo levantam a poeira da necessidade do povo às vésperas da chegada do pontífice. Mas a aparição de João Paulo se faz de maneira alterada. Na visão da população do micro-município do Uruguai, o Papa é um santo que descerá naquele ponto daqui alguns dias. Charlone e Fernández, com a obra, se mostram ao mundo da sétima arte com a cartola e fraque. A riqueza de suas captações está justamente em filmar a miséria daquelas pessoas. Beto é só uma figura entre tantas. E fulanos como ele têm aos montes. Punhados sim. Quando quer levar vantagem em algo, invariavelmente se dá mal.
‘O Banheiro do Papa’ é a melhor fita da temporada por sua contagiante e admirada singeleza.