Podem chamá-lo de dedicado (publicado originalmente em 8/5/2008)

Pena Daniel Day-Lewis ter parado a carreira em 1997, aos 40 anos. Dedicou-se ao mero ofício de sapateiro para qual finalidade? Refletir sobre a profissão e seus egoístas e solitários desafios? Ou a interrupção teve na essência um toque a mais? O ator havia sido galardoado com o Oscar de ator por ‘Meu Pé Esquerdo’ (1989) e apontado por ‘Em Nome do Pai’ (93). Fez outros sucessos retumbantes: ‘A Insustentável Leveza do Ser’ (1988) e ‘O Último dos Moicanos’ (1992); fitas que, se você ainda não viu, pelo menos já ouviu falar. Aí, a barreira. Cinco anos sendo consertador de botinas. Até que três pessoas o convenceram a vir à baila: Martin Scorsese, Leonardo DiCaprio e Harvey Weinstein, presidente da Miramax. Com muitas conversas insistentes, fizeram-lhe a cabeça. Estrelaria ‘Gangues de Nova Iorque’ (2002). O personagem, perverso Bill Açougueiro, o trouxe novamente aos holofotes.

Veio igualmente a lembrança da Academia. Elogios. O cerne artístico estava impregnado para nunca mais (será?) sair. Então, rodou outro longa-metragem: ‘O Mundo de Jack & Rose’ (2005). No ano passado, o confete consagrador e definitivo. Dirigido por Paul Thomas Anderson (de ‘Magnolia’ – 1999) interpretou o xará Daniel Plainview em ‘Sangue Negro’. O filme trata da luta dele a fim de se erguer financeiramente perfurando poços de petróleo em pequenas cidades dos Estados Unidos. E Day-Lewis esbanja em sua melhor performance e forma... Sua atuação é verdadeira, completa e bela. O magnata Plainview deu ao ator a segunda estatueta. Por quê? A explicação é bem fácil. Os anos de ostracismo serviram de base para o renascimento como profissional de qualidade. D.Lewis estava, há 11 anos, cansado da reputação, glória. Sentia (erradamente) que seu cacife estava baixo. Reciclou-se.

Ao lado do filho, Plainview, antigo minerador de prata, transforma-se no proprietário de uma importante companhia petrolífera. Assim, explora os empregados, é ganancioso, individualista e sem alguma dose de compaixão... Isso lhe trará problemas com Eli Sunday, carismático orador da igreja da 3.ª Revelação, a quem o capitalista ‘deve’ cinco mil dólares. E também com o rebento. H. W., por falta de cuidados em um grave acidente, fica surdo. O pai, por perceber o não aproveitamento dele, o pequeno, ao trabalho, resolve entregá-lo à espécie de orfanato. Ali, o menino aprenderia com mestres especialistas em deficiência auditiva. Uma das cenas marcantes é a confissão de Plainview, no altar da congregação de Eli, de arrependimento de ter ‘desamparado’ o garoto aos Deus dará. ‘Abandonei meu filho!’, grita, ao espanto dos presentes. Por trás daquilo está Day-Lewis, reconstruído, talentoso.

Além disso, versátil. Basta notar a composição e a paixão ao personagem. Foram praticamente 40 meses de preparação. Isto não é pouco se contarmos o fato de existirem atores, por necessidade ou não, que anualmente debruçam-se a três, quatro fitas. De 2002, quando filmou ‘Gangues’, até 2006, quando o trabalho para ‘Sangue Negro’ iniciou – tendo o intervalo para o menos difícil ‘O Mundo de Jack & Rose’ – ele se apegou ao que Anderson queria. Jogou-se na lama negra do petróleo, sujou-se de tudo quanto é jeito. Ou seja, tingiu-se de preto pela obra. Não é qualquer um que aceita. Em ‘Meu Pé Esquerdo’, Daniel Day-Lewis fez Christy Brown, paralítico cerebral que se comunicava somente com aquele órgão do corpo, o único sob seu controle. Brown o usava habilmente à pintura e escrita. O ator não teve dúvidas. Querendo compreender o sofrimento do personagem inválido, não levantava da cadeira de rodas nem ao término dos takes. Podemos chamá-lo de outra coisa senão de dedicado?

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 10/09/2009
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