Kubrick na veia (publicado originalmente em 1º/5/2008)
Deleitar-se com os filmes de Stanley Kubrick é uma experiência fascinante. Em 49 anos de carreira, o diretor realizou 16 fitas (três curtas, dois médias e 11 longas-metragens). A exatidão combinada com precisão dava os tons de suas produções e por aí se explica o motivo de ele ter realizado praticamente um trabalho a cada três anos, aproximadamente. Destas 11 obras com mais de 70 minutos de duração, vi sete. Hoje discorrerei aqui sobre a primeira delas: ‘O Grande Golpe’, de 1956. Com temática já aberta ao público desde o começo da trama – o ousado assalto ao hipódromo, cujo valor ‘arrecadado’ seria de dois milhões de dólares – Kubrick nos brinda com um refinamento para lá de arrojado à época. Responsável pelo roteiro, montou a fita com variações das cenas, o que não chega a ser uma inversão de seqüências, como mais tarde se fez em ‘Amnésia’ (2001). Apenas o contexto é mostrado. Por exemplo: exibi-se um determinado seguimento; depois, revela-se como se atingiu aquele ponto. A arte de Kubrick está em aprimorar este tipo de ineditismo. O resultado é, aos cinéfilos, bem impressionante. Temos ali a oportunidade de ver o nascimento de uma nova geração.
‘O Grande Golpe’ expõe Johnny Clay, ex-presidiário que após cumprir cinco anos de detenção planeja voltar à ativa na trapaça mais rica em detalhes de até então. No dia do grande prêmio, ele e os comparsas roubarão toda a féria ajuntada pelos apostadores. Os milhões seriam divididos, além dele, por Randy, Marvin, George e Mike. O quinteto tinha tarefas a cumprir. Um atrairia a atenção, com a briga arranjada, dos tiras. O outro atiraria no cavalo favorito a ganhar a corrida para despistar mais o povo presente. Um terceiro, com passos cronometrados, abriria a porta para que, finalmente, J. Clay entrasse no cofre, rendesse pessoas, pusesse as notas na sacola e fugisse sem deixar rastros. Há ainda a cumplicidade do caixa e do garçom do hipódromo. Eles também levarão algum trocado. O que os fora-da-lei não contavam era com a ganância de Sherry, esposa de George, e seu amante. A dupla, ao saber do plano mirabolante, resolve contra-atacar para ficar com toda grana. Neste espalhafatoso dia, claro, um segundo que soasse torto tiraria a turma da jogada. É o que ocorre. Imprevistos acontecem e mortes aparecem. O bando sucumbe e J. Clay foge com a namorada ao aeroporto com o dinheiro.
O desfecho é digno de se ver de joelhos. No aeroporto, no carrinho que leva as malas ao avião, a valise de Clay escapa do bagageiro. Cai. Notas de dólar voam movidas pelas hélices dos aeroplanos prontos para decolarem. Estarrecido, ele e a namorada observam a cena. Depois, tentam, em vão, ir à rua pegar um táxi e escapulir dali sem deixar vestígios. É tarde, porém. Certamente, Kubrick já sabia de antemão o furor que esta seqüência causaria. Está no panteão das cenas inesquecíveis do cinema. Aos 28 anos, o diretor, tão compenetrado naquilo que mais amava– a sétima arte –tornava-se enfim o Stanley Kubrick reconhecido. ‘O Grande Golpe’ assovia nos nossos ouvidos nos chamando para ver uma das cinco obras-primas dos ecrãs dos anos 50, ladeado por ‘Intriga Internacional’, ‘Quanto Mais Quente Melhor’ (ambos de 1959), ‘A Montanha dos Sete Abutres’ (1951), ‘Luzes da Ribalta’ (1952). Kubrick, que ficaria melhor com a experiência, como se nota em ‘Laranja Mecânica’ (1971) e ‘2001: Uma Odisséia no Espaço’ (1968), filmou pouco, verdade, mas o suficiente. Estou com ele nas veias!