Entre os atos (publicado originalmente em 3/1/2008)
Em meados de 2002, o cineasta João Moreira Salles (o criador da revista piauí) resolveu fazer um documentário pretensiosamente histórico. Em contato com Luís Inácio Lula da Silva, então nome forte das eleições daquele ano à presidência da República, perseguiria-o por onde ele fosse. Faria isto apenas nos dias que antecederiam o segundo turno do pleito. Mas, como pesquisas indicavam que o candidato petista poderia levar já na primeira volta, Salles aprontou câmeras, fios e luzes e iniciou a peregrinação junto ao político. “Entreatos” estreou nos cinemas em 2004. Um filme bem revelador.
Entretanto, o teor da fita não chega a surpreender. Os barulhos da mídia e também da crítica de cinema foram maciços, porém não atabalhoados. Vê-se, então, Lula no barbeiro. “Você pode fazer a barba do presidente da República na próxima segunda-feira”, cochicha o candidato seis dias antes do primeiro turno... A previsão não se consolidou, pois o ex-torneiro mecânico escorregou para o turno número dois, ao lado de José Serra. “O Palácio do Planalto é triste por causa do Fernando Henrique. Ele não joga bola, não dança, não toma uns gorós...”, diz Lula ao vice José Alencar numa viagem de avião. Tudo devidamente registrado por Salles. O petista se solta: canta, reclama, faz suas confissões.
Todavia, nada de espantoso. “Não tenho saudade do meu tempo de fábrica”, declara. Prefere o terno, gravata, enfim, trajes sociais que combinem com a barba grisalha dele. Aquele aparato todo de bastidor durante as gravações dos programas eleitorais também está em “Entreatos”. Personagens de outrora, que fariam tremer o Distrito Federal por denúncias de corrupção, como José Dirceu e Duda Mendonça, aparecem a esmo do documentário. Eram os braços-direitos de Lula, afinal. No DVD está ainda outro documentário: “Atos – A Campanha Pública de Lula”, com mais pitadas atrás da câmera nervosa de Salles. Nele, surgem parte da equipe do cineasta, com seus horários apertados e detalhes.
“A pressão que os militares fazem em Fernando Henrique me incomodam bastante. Temos de acabar com essas coisas oficiais”, opina Lula em mais um trânsito aéreo, se sentindo como eleito. “A maior liderança que surgiu no Brasil e América Latina nesses últimos anos fui eu”, segue. Em 2002 Hugo Chávez e Evo Morales (e até mesmo Cristina Kirchner) se preparavam para ocupar o poder em seus respectivos países... Frases e emoções, sentimentos e olhares captados pelos rolos da película de João Moreira Salles. Obra-prima do cinema político brasileiro, sem dúvida. E Lula foi eleito, reeleito.