Solidão a dois (publicado originalmente em 27/12/2007)
Dustin Hoffman é dos raros atores a conseguir, pelo menos, um explosivo sucesso por década. Desde os anos 1960, quando estourou com “A Primeira Noite de um Homem” (1967, aos 30 anos), o ator trabalhou em obras-primas nos intervalos de dez anos seguintes. Fez “Kramer versus Kramer” em 1979, “Todos os Homens do Presidente” cerca de 30 meses antes, ‘Rain Main’ em 1988, “Totsie” seis anos antes, e, na década de 1990, esteve no par de filmes cults de jornalismo “O Quarto Poder” e “Mera Coincidência”, ambos de 1997. Desafortunadamente, até agora, entre 2001 e 2007, na década número um do século 21, ainda não emplacou um sucesso de público e crítica. Este pequeno resumo da biografia profissional dele nas linhas anteriores serviu para dar sustentação ao melhor momento de Hoffman nas telonas, o qual, infelizmente, coincidiu com um dos piores instantes de vida também. Ao aceitar interpretar o protagonista de “Kramer versus Kramer”, o ator vivia, de fato, o personagem.
Seu Ted Kramer, profissional superdedicado, que se importava mais com o trabalho e deixava a família em segundo plano, se viu, de repente, em uma casa sem chão. A esposa, Joanna Kramer, feita pela espetacular Meryl Streep, abandonou-o, sem mais explicações. Na verdade, se via nos olhos dela as razoes: atolada psicologicamente, queria o marido, que lhe ignorava. Para piorar, este divórcio era o surgimento do pai solteiro, pois o casal tinha Billy, de cinco anos. Então, Ted, o publicitário ávido por novos serviços, tinha de encarar o mais delicado deles: cuidar, sem qualquer experiência, daquele garoto loiro, cujos cabelos lisos e olhar triste transformava Ted em um mendigo desprovido de rumo. Hoffman enfrentava situação semelhante: seu casamento com a atriz Anne Byrne Hoffman chegava ao fim após dez anos de união. Como lidar com estes dois mundos? Qual melhor maneira de, talvez, encarnar a si próprio, com frases de Hoffman, com ações de Ted, ou vice-versa? Cenas complicadas.
O título da coluna de hoje refere-se a uma expressão criada por Nelson Rodrigues, quando de seu matrimônio com Lúcia, uma das últimas esposas do escritor e dramaturgo. A filha deles, Daniela, havia nascido cega, surda e muda. Este trio de tragédias se juntava às outras tantas de Nelson. Com Ted e Joanna, isso poderia ser explicado pela falta absoluta de diálogo. Enquanto ele trabalhava para colocar dinheiro dentro de casa, ela deveria ser a responsável por manter o lar calmo. Billy estava aí incluído. Incomodada, ela não suportou e ‘foi se achar’, como Joanna mesmo afirma mais tarde. São quase 18 meses sem ver o filho, e a mãe retorna com multiplicadas garras. Quer a guarda do rebento, mesmo que signifique disputar a custódia na Justiça. Ted e Billy, a esta altura, se dão bem demais. O pai e o filho completam-se em sintonias finas depois de tantos atropelos, tropeços e percalços. Tanta emoção é carregada com alta dose de compaixão... “Kramer versus Kramer” é um filme inesquecível.
Variados tipos de qualidade foram bem avaliados pela Academia de Artes Cinematográficas. Na festa do Oscar de 1980, o longa-metragem tornou-se marcado na lista das fitas premiadas com os cinco grandes prêmios: melhor filme, diretor (para Robert Benton), ator (D.Hoffman), atriz (Meryl) e roteiro (também para R. Benton, que, humildemente, devido às diversas improvisações com seu casal principal, pediu para que Hoffman assinasse com ele o roteiro – o ator, claro, não aceitou). A película se sustenta com tristeza sublime, só vista antes com o neo-realismo italiano pós-Segunda Guerra de Vittorio de Sica, com “Ladrões de Bicicleta” (1948), o longa-metragem mais plangente e tétrico que já vi... Indicada a edição, fotografia, ator coadjuvante (Justin) e atriz coadjuvante (Jane Alexander), “Kramer versus Kramer” saiu consagrado do Oscar. Dustin Hoffman também, porém, desquitado (ele casou-se meses depois com Lisa Gottsegen, com quem está atualmente – tem quatro filhos com ela).
Baseado em livro homônimo de Avery Corman, a fita de 28 anos atrás tem lastro corrente. Seus inúmeros toques foram catequizados milimetricamente. Benton pensou o papel de Ted para Hoffman desde o início da idéia de se montar um longa. Meryl, que na época filmava “Manhattan” (1979), de Woody Allen, não era a primeira opção do diretor, aceitou o papel aos quase 30 anos de idade e deu banho nas seqüências raras, mas consistentes, nas quais participou. Justin caiu nas graças da equipe de gravação. No DVD, há um documentário de cerca de 45 minutos com “causos” divertidíssimos da atuação dele, e, obviamente, outras engraçadas no mesmo nível. Enfim, “Kramer versus Kramer” não só fixou seu tempo no cinema como agradou, quando estava em cartaz, o público jovem. “Era filme pequeno (100 minutos de duração), mas pegou muita gente”, diz Benton em depoimento no DVD. E é exatamente isto: poucos atores, enormes talentos e uma história linda de se ver, rever e tornar a ver.