Poesia do Vale (publicado originalmente em 6/12/2007)
Para se imaginar o filme, basta a idéia. O passo adiante, a construção dos fotogramas, é mero detalhe. A mente comanda. A câmera obedece. Assim, uma fita pode se transformar em poesia visual e sonora. Imagens que se transformam em palavras, ainda ocas, levam o espectador a ter a sensação de ler em frente à tela. Em meados de 2006, Silvia Bigareli incorporou o Vale do Paraíba. Caminhou, viajou, documentou. Com o parceiro Victor Menezes, rodou “Sapucaia” (2007), lançado no início do ano. Esqueçam as palavras nele. Isso não importa. O curta-metragem (pouco mais de 23 minutos) é o espelho da região talvez mais rica e produtiva do país: o Vale do Paraíba, a terra sem males, como a obra propõe. Numa sucessão de figuras do lado de cá do Estado de São Paulo, destacam-se os temas artesanato, pintura, ferrovias, aeronáutica. No patrimônio cultural valeparaibano, “Sapucaia” está na frente da fila. Vemos a gente ali, por meio de frases, poesias e sons misturados para se fundirem mais para frente. Os olhares se Silvia e Victor apontam para histórias indígenas, negras, religiosas. E elas se entrelaçam em um momento da película. Tudo com a calma e a tranqüilidade típicas dos caipiras.
Em cerca de seis meses, desde o começo das filmagens até o lançamento propriamente dito, a equipe aspiraram pelo simples. Funcionou. De tão ingênua, modesta, “Sapucaia” nos atinge de forma até comovente. Quando fotos antigas se cruzam com novas, vemos mapas de Jacareí e São José dos Campos lisos, do século 19... No instante seguinte, completamente povoados, cheios de riscos, cujas demarcações implicaram no progresso angustiante e de domínios do século 20... O carro com câmera na janela, correndo mais que pode, pelas estradas antigas, as quais uniam Rio de Janeiro e São Paulo e a travessia complicada, demoravam 12 horas de uma cidade para outra. Passado e futuro lutam e se digladiam como podem para sobreviver em “Sapucaia”... O curta visita Cunha, Taubaté, Lorena, São José, Jacareí etc. As artes presentes têm vez, claro. Cerâmica, natureza... As mãos de Dita Olímpia, a artesã veterana que explica como se dá o processo de seu trabalho. Os dedos marcados pelos calos e a força brutal para se mexer um centímetro. Nada é mais bonito. Assistir àquela produção de Dita é nos vermos como somos: pessoas valeparaibanas com algo diferentes das demais – o recheio do sotaque.
Vídeo-documentário elaborado pela empresa Jequitibá Cultural, “Sapucaia” começa com urnas funerárias indígenas, ‘inspiradas formalmente em cumbuca da árvore da sapucaia’, como está escrito na contracapa do DVD. O texto explica a origem do nome do curta: trata-se de plantação brasileira, muito típica e admirada por ficar com folhagem rosada e flores roxas na primavera... A castanha vem dali, nas tais cumbucas... Estas podem ser usadas como objetos ‘utilitários e por forneceram água por entre as samambaias nascidas nas suas raízes’. Ao ser exibido em alguns festivais da região, correu a outras festas, com premiações e elogios retumbantes. A consagração ocorreu, porém, bem longe das matas e chapéus do Vale. Foi na cidade de Trento, na Itália, na décima edição do ‘Religion Today’, onde “Sapucaia” passou ha poucos meses. Patrocinado pela Nova Dutra, com os apoios da Fundação Cultural de Jacarehy José Maria de Abreu e prefeitura municipal, a fita ‘deu o que falar’... Continua a causar emoções nos locais onde é reproduzido, pois o som, por exemplo, foi montado por meio dos objetos dos índios. Quem o vê, se identifica de imediato. Não existe o ‘como não’. Somos nós todos.
Sapucaia, do tupi, ‘fruto que faz saltar o olho; do guarani, ‘que fala aos gritos, anuncia em voz alta. O Vale do Paraíba é a mescla disto. Quem nasceu aqui, sabe o teor da terra. No filme de Silvia e Victor, nas raras frases balbuciadas pelos poucos personagens, sabemos, de qualquer maneira, quem são e o que realizam aquelas pessoas. Na verdade, é um ode à cultura caipira, desesperadamente em busca de se descobrir de novo. Ela, que andava atualmente tão escondida em becos de gozação. Mal lembrava anos antes, quando Amacio Mazzaropi enchia salas de cinema dizendo ‘porta’ e ‘porque’ com o ‘erre’ puxado ao limite do sertanejo. Como Rolando Boldrin faz brilhantemente em quase três décadas de ousadia. “Sapucaia” resgatou isso. E sem necessitar falar tanto. Nas imagens do curta, que merece cada aplauso dado pelo público, nossa descarada identidade arromba portas. Que assim seja.