O mundo de Sofia (e Rímini) (publicado originalmente em 22/11/2007)
Filmes sobre relacionamentos sempre dão o que falar. A explicação disso é genérica, mas séria: além de as fitas serem mais chamativas se comparadas com aquelas do mesmo saco de farinha, cujo protagonista é o recurso visual, e de aspecto puramente humano, estas histórias têm, reparem, sempre bons atores novatos e direção consistente, bem como roteiro. Com “Closer – Perto Demais” (2004), por exemplo, a tese se aplica com força, afinal, Natalie Portman firmou-se como atriz neste trabalho, e Mike Nichols não é qualquer um. “Encontros e Desencontros” (2002) também ratifica a afirmação. Scarlett Johansson se transformou na Marilyn Monroe do século atual na obra dirigida pela maníaca Sofia Coppola, filha de Francis Ford. Indo para trás, “A Primeira Noite de um Homem” (1967), outro longa-metragem de M. Nichols, expôs ao planeta o trintão, mas não menos invisível até então, Dustin Hoffman. O contato mútuo vale mais a palavras. Olhares servem de explicação. É o que ocorre com “O Passado”, trama do argentino Hector Babenco nos cinemas brasileiros desde o fim de outubro.
Marta Góes e H. Babenco roteirizaram o livro homônimo de Alan Pauls sobre Sofia e Rímini. Os dois, juntos desde o começo da adolescência, estão casados há 12 anos e decidem, pacificamente, se separar. Para Rímini (Gael Garcia Bernal, o Che Guevara de “Diários de Motocicleta” – 2004), a situação é confortável: conhece outras mulheres, apaixona-se sem vontade. Porém, não desvia o foco de sua antiga parceira. Fica atormentado, tem lapsos de memória em seu trabalho (é tradutor), enfim, sua vida parece se normalizar. Puro palão. Ele se esforça para jogar seu passado para dentro do ralo, mas as lembranças têm mais músculos. Com Sofia (Analía Couceyro, aí a tão grata revelação!) muda quase nada. Ela, entretanto, é perfeitamente possessiva e ciumenta enrustida (às vezes). Aceita ficar longe do ex-cônjuge, sem, deveras, desviar-se da biografia dele. Persegue-o. Briga com Rímini por ele namorar e não contar a situação à agora ‘amiga’. Bafeja em seu cangote cada vez que o menino pelo qual se encantou na infância tenta escapulir. Não existem mais direitos, liberdades. Estão presos.
Analía domina a película. Em seu quatro papel no cinema, a atriz sabe se impor. O rosto forte, marcado pela ausência da beleza-padrão hollywoodiana, olhar de ataque imediato, constrangem todos os espectadores. Sentimos medo dela a partir da segunda metade do filme. Na medida em que o longa avança, Sofia se amaluca. Deixa-se dominar pela paranóia. A loucura em seu estado catatônico finca-se no corpo dela. Bernal, por sua vez, não surpreende tanto, já que seu talento é reconhecido e ousado por acatar personagens deste porte. É difícil encarar um homem cuja recordação se mistura de forma unânime em confusão mental. A trajetória de Rímini se altera a tal ponto de ele se isolar do mundo em um apartamento e, mesmo assim, o passado não o larga. E Babenco guia o trabalho com bastante detalhe. Seu nono drama soma tragédias: nos casos de Rímini estão uma jovem prostituta (Vera), a colega de profissão (Carmen) que lhe confere a paternidade, e uma senhora de ‘meia idade’. São três protótipos a deleite do personagem. Nada que Sofia não suje com sua presença. O mundo dela conta.
Ela desgraça o futuro de Rímini. Macula o ontem. Seria algo como a doença terminal de Remy, de “As Invasões Bárbaras” (2003), e sua melancolia inteira, postos para fora na pele de Sofia. Ao se ver afastada do marido, se torna amarga, perversa, e ao mesmo tempo libidinosa, a ponto de desejar o mais simples no teor sexual. “O Passado” possui cenas carregadas e vocabulário que beira o chulo, e é necessário que seja desta maneira. Saber montar diálogos como são os deste roteiro é equilibrar as palavras numa bandeja torta. Deve-se, sim, pender-se do lado autêntico. E Babenco se volta ao canto certo. Permite Sofia se enganar. Dá a Rímini o sossego esperado, apesar de ser fraco e viver na eterna tristeza estabelecida pelo distanciamento do filho (e será que ele se importa com isso?). Ali, a frieza reina e constrói. Os seres humanos são vistos por lentes iguais a eles, com frustrações, desesperanças, decepções e angústias mortais. “O Passado” cutuca ferida com álcool. Dá às dores dos protagonistas escalas lancinantes. Ficam perdidos. A gente é assim quando duvida. Não temos para onde escapar.